pelo espírito Eugênia.
O Apocalipse, o profundo, sibilino e quase ininteligível livro da Bíblia, que encerra a coletânea basilar sagrada da cristandade, alude ao “antiCristo” como uma figura personificada; entretanto, numa perspectiva simbólica, numa leitura mais adequada para a complexidade e profundidade do texto reputado a João Evangelista, pode representar mais um estado de consciência ou um padrão de comportamento que propriamente uma pessoa de fato.
Em passado recente, mulheres que se perfumavam e se maquiavam, bem como usavam roupas alegres e tinham conduta expansiva, eram imediatamente taxadas de mulheres de vida vulgar, niveladas a prostitutas e cortesãs. Por aquele tempo era ainda comum deixarem-se mulheres analfabetas, sob pretexto de que seria propiciar confidências com amantes, à distância, por cartas de amor, o saberem ler e escrever. E não raras desceram a óbito desnecessariamente, por ser considerado impudico serem examinadas por médicos homens. Porque, é claro, mulheres não tinham acesso ao meio acadêmico, contando-se nos dedos das mãos as figuras femininas que ostentaram o título de médicas antes do século XIX.
Há pouco mais de oito decênios, nenhuma nação da Terra, por mais civilizada, oferecia direito a voto aos componentes do sexo feminino da espécie, e é bem recente a ideia generalizada de que homens e mulheres têm o mesmo valor como ser humano, embora salários sejam desnivelados entre os dois gêneros, até a data presente, em praticamente toda parte, além de oportunidades de trabalho e ascensão social e política.
Cinquenta anos atrás, aproximadamente, mulheres decididas e profissionais de sucesso eram observadas como portadoras de distúrbios psicológicos e sexuais, assim como homossexuais, ainda agora, em expressivas fatias das sociedades humanas, são vistos como elementos perturbados e perturbadores do tecido social.
Há quatro décadas, nos Estados Unidos da América, a mais poderosa nação do planeta, negros eram formalmente considerados cidadãos de segunda categoria, segregados em medonhos sistemas de discriminação social. Até a segunda metade do século XIX, na pátria de Washington, bem como no Brasil, os afrodescendentes eram reduzidos a alimárias comuns, vendidos em mercados de escravos, como matéria de consumo e de uso pessoal ou comercial.
Até os anos 80 do século transato, aproximadamente, em quase todo o território brasileiro (excetuando-se as metrópoles maiores), era tido como artigo de decência e nobreza feminina, praticamente obrigatório, o casar-se virgem, o que, atualmente, representa uma condição vista como imatura e mesmo irresponsável, já que implica estabelecer-se compromisso público e grave de enlace existencial com alguém para a intimidade conjugal, sem se conhecer a pessoa – absurdo dos absurdos – na sua própria intimidade!
E que dizer da sombra “moral” que sobrepairava ao divórcio, que só surgiu como possibilidade legal na pátria brasileira em 1977? “Desquitadas”, como eram chamadas as separadas antes da “era do divórcio”, eram niveladas quase a “mulheres de programa”, e mesmo os “desquitados” eram repudiados pelas “moças de família”, para não trazer o estigma da marginalidade social para o clã a que pertenciam. Como pode haver a ideia de um contrato sem distrato? O que é extremamente óbvio e considerado completamente normal nos dias atuais (até demais: os excessos no âmbito das separações por nada e por tudo bem revelam isto) era quase um fantasma inaceitável para qualquer personalidade ou grupo que se prezassem.
No Brasil, nordestinos são considerados quase uma sub-raça no sudeste e no sul do país, ao passo que os próprios sulistas e “sudestinos”, apesar do desdém com que muitos olham para seus irmãos do norte, são tidos, na Europa nórdica e nos EUA, como seres humanos inferiores, por serem latinos e sul-americanos.
Recentemente, homossexuais eram avaliados à conta de criminosos. No século XIX, somente as legislações da França, Itália e Brasil não cominavam como ilegais práticas gays. Freud conseguiu descriminalizar, com argumentos acadêmicos, as condutas sexuais de pessoas homoeróticas, dizendo-as “pervertidas” da libido e não do caráter, sugerindo-lhes tratamento e não cadeia. E somente em 1973, a “Associação Psiquiátrica Americana” chegou à conclusão científica de que a homossexualidade não constitui distúrbio de nenhuma natureza, nem mesmo emocional, quanto mais mental ou moral. Até hoje, todavia, homossexuais são quase que apenas tolerados em ambientes cultos e rechaçados entre pessoas ignorantes dos países mais avançados do orbe, condenados, inclusive por religiosos de todos os gêneros, como aberrações da natureza e da espiritualidade, já que a religião é o mais reacionário setor da cultura humana.
Do outro lado do globo, radicais do Islã sustentam despudoradamente a “jihad” (*), lançando-se contra a vida de inocentes de outros povos e ideologias religiofilosóficas diferentes, com a justificativa de os considerarem heréticos. Evangélicos e católicos radicais em nosso pacífico e dócil país, com a mesma falta de escrúpulo, publicamente atacam o caráter de gente decente e nobre, por pertencerem a partidos de crença diversos dos seus, sobremaneira o espírita. Em ambos os grupos, xiitas islâmicos e cristãos fundamentalistas brasileiros, o mesmo lastreamento blasfemo e sacrílego de buscarem trechos do Alcorão e da Bíblia, respectivamente, para pretextarem sua atitude mesquinha e injustificável.
A prostituta é discriminada por vender explicitamente o sexo por algum tempo. A “dama” da sociedade que se casa com um homem por sua posição financeira ou social é avaliada como digna e honesta. Só que esta última vende não só o sexo, mas seu útero, sua alma, seus sonhos, sua vida inteira, para se valer do sobrenome, da conta bancária e das influências do homem eleito como marido apto, para sua própria pessoa. Quem seria mais imoral? Jesus dá a resposta. Quando a adúltera é pega em flagrante traindo seu esposo, em pessoa vai defender a “pecadora” e diz sua famosa máxima: “Quem estiver sem pecado atire a primeira pedra”, após o que saem todos os circunstantes ao evento do quase apedrejamento, um a um, a começar dos mais velhos. E Jesus, por fim, “perdoa-a” e lhe sugere: “Vai e não peques mais”. Como o estudo etimológico da palavra “pecado” revela que seu significado é “errar o alvo”, podemos entender que o Cristo queria dizer, em verdade, algo como: “Você, que não faz sexo com o homem com quem foi casada pela decisão de seus pais e não do seu coração, e que resolve entregar seu corpo e sua alma apenas a quem ama, está agindo muito à frente do seu tempo, mas deve confrontar menos seus coevos, para que não seja punida por não ser compreendida, a ponto de perder a vida física”.
Jesus convivia com ladrões, prostitutas, adúlteros, doentes de todos os gêneros, inclusive os altamente estigmatizados hansenianos (leprosos), gente simples, pobre e ignorante; e acusava de hipócritas muitos dos homens mais prestigiados e admirados de seu tempo, a começar pela cúpula religiosa e política de Israel, sendo, para pasmo dos indignados “idealistas” de seu tempo, compreensivo e tolerante com o domínio imperialista de Roma, tão malvisto pelas classes cultas e pela elite política da Judeia. A questão é que Jesus preferia respeitar o pragmatismo declarado de Roma ao idealismo falso de Israel, assim como preferia a autenticidade de prostitutas e cobradores de impostos à dissimulação de pseudorreligiosos. De fato, o Império Romano, que respeitava cultura, idioma e religião de cada povo colonizado, estava muito à frente do primitivismo de seus dias, tendo uma função civilizatória sobre as nações dominadas, reconhecida unanimemente por historiadores.
Allan Kardec, assessorado pelos espíritos superiores, por sua vez, defendeu a igualdade de direitos entre homens e mulheres, assim como a de indivíduos pertencentes a etnias diversas, o que causou verdadeiro frisson, para não dizer “escândalo”, entre seus contemporâneos, muitos contados entre componentes das camadas mais ilustradas da população fina de Paris, meca cultural do planeta por aqueles dias.
O que é ser cristão? O que é ser espírita? Para simplificar em um único paradigma, poderíamos dizer: é ser antipreconceituoso; é amar não só o diferente, mas até aquele que nos ataca e nos faz mal, não no sentido de acolhê-lo na intimidade (o que nem Ele fez), mas de não desejar o mal e até fazer o bem, quando e quanto possível, ao irmão desorientado que nos assesta sua sanha agressiva.
O preconceito é o signo máximo do pensamento anticristão, antiespiritual, anti-humano. Discriminar alguém por ser pobre, doente, feio, velho, inculto, estúpido, obeso, deficiente físico ou mental, ou mesmo – desafio dos desafios – pervertido ou malevolente, constitui sempre um índice de inferioridade moral e dissonância com os ideais crísticos.
Podemos ser firmes, diretos e até severos (para proteger pessoas), sem, todavia, marginalizar quem não condiga com nossas melhores impressões do que seja bom e louvável. Claro que não devemos compactuar com o abuso e a tirania de nenhuma forma. Contudo, frequentemente, teses indefensáveis se travestem de proteção a direitos constituídos, como no caso dos egrégios analistas socioeconômicos do século XIX que, na América do Norte e do Sul, interpretavam como um desatino genocida a abolição do regime escravocrata de organização social, sob o argumento de que haveria um colapso das economias americanas, com a alforria em massa dos contingentes demográficos de cativos negros.
Atualmente, para dar um exemplo grosseiro da presença do preconceito nas relações humanas, gente estúpida ou ignorante é tratada aos empurrões, como se ser menos dotado de inteligência fosse culpa de alguém ou não ter tido acesso a boas oportunidades de educação idem. Não percebem os surtados desta ordem curiosa e particular (patética) de preconceito que exigir atos brilhantes de quem é menos provido de potenciais intelectivos é um dos maiores atestados de pouca inteligência – no mínimo emocional.
Além do universo das relações interpessoais, o “especismo”, conceito criado por pensador moderno, para designar “preconceito de espécie”, assim como o “racismo” e o “sexismo” indicam, respectivamente, a discriminação por raça e sexo, tem levado à devastação de ecossistemas e a maus tratos de animais, com risco de sobrevivência para a biosfera do planeta, como um todo (incluindo, obviamente, a própria humanidade), pelo pressuposto de superioridade e supremacia do ser humano sobre os demais seres vivos, com isto querendo dizer, em verdade, abuso e violação completa das outras espécies, em função de não só necessidades, mas também de caprichos de seres humanos nem sempre lúcidos, maduros e conscienciosos no uso dos recursos naturais à sua disposição.
O preconceito se revela em toda parte, bem mais do que imaginamos, por constituir, digamos, uma espécie de efeito colateral do funcionamento mental humano, que, para simplificar padrões e otimizar processamento de dados, cria certas matrizes paradigmáticas, esquemas condicionados de ideia e sentimento que mecanizam, abreviam e facilitam os trâmites do pensamento, que, entretanto, se tornam, em verdade, pressuposições teóricas de validade, a dizer por baixo, questionável. Assim, o “pré-conceito”, em seu estado puro, é invisível para quem lhe padece a influência, porque é como uma espécie de lentes de contato sobre os olhos da psique, que nunca são vistas diretamente, mas que filtram toda a percepção de mundo de um indivíduo. É por isto que até o meio científico apresenta inúmeras de suas manifestações. Cientistas revolucionários e celebérrimos foram perseguidos por ideias preconcebidas de seus contemporâneos, até mesmo por correligionários de profissão, como Pasteur, Galileu (que quase foi sentenciado à pena capital), Graham Bell e Thomas Edison (no início de suas carreiras), para citar apenas alguns poucos casos. Lamentável e mesmo deplorável, porque, como já denunciamos neste parágrafo, uma “pré-concepção” é uma ideia apriorística, uma crença prévia a filtrar a realidade, o que de modo algum se coaduna com o ideal de isenção que rege a legítima pesquisa científica, que colima colher dados, retratar fatos e entender fenômenos, com a máxima fidedignidade possível, e não corroborar impressões íntimas dos observadores.
E o mais grave, dentro desta temática melindrosa e de implicações amplas e devastadoras: todo ser humano, na civilização terrena, porta expressões mais ou menos elaboradas destas fixações paradigmáticas, algumas com traços mesquinhos e malevolentes, sobremaneira quando apresentando inclinações ao fanatismo religioso, pela aura de verdade absoluta e de “inquestionabilidade” com que as pressuposições de ordem espiritual costumam ser revestidas, por líderes inescrupulosos e/ou pouco sábios.
Assim, Jesus foi morto por preconceito, mas os juízes de Joana d’Arc não se deram conta de que também estavam agindo preconceituosamente ao condená-la à fogueira, repetindo o gesto da elite judaica que levou o Messias à morte. Somente mais tarde, bem mais tarde, sob efeito de remorsos candentes, deram-se conta da barbaria e injustiça a que se confiaram. Sentiam-se homens santos, fazendo um bem à humanidade, ao executar Joana d’Arc, sem se precatarem da postura extremista e, por isto mesmo, injusta, que a “caça às bruxas” constituía. Hoje, muitas pessoas se inflamam e se dedicam a aviltar o nome alheio. Estariam, alegoricamente, matando os vanguardistas do seu tempo? Têm, é claro, seus motivos para se sentirem com razão, como os julgadores da grande “Pucela de Orleans”, a santa francesa que é heroína nacional até os dias de hoje. Teriam razão como os juízes e executores da santa guerreira Joana d’Arc?
Estaria você, amigo, matando alguém agora, aos poucos e sutilmente, em nome do bem e da moral? Onde está o Cristo que você crucifica? Acha que somente o Jesus histórico apregoado à cruz era o Cristo sendo crucificado? Mães martirizadas e artistas incompreendidos podem sê-l’O, como também amigos desprezados e gente considerada de “má vida”, apenas por não compartilhar de seu código de ética e valores – sempre relativos a época, cultura e personalidade em foco, e não absolutos, como o emocional humano gosta de sentir suas premissas de verdade.
Os preconceitos continuam correndo soltos, e nós, do Plano Maior de Vida, podemos vislumbrar, com mais clareza, o que, do plano físico, soa obscuro e mesmo distorcido, com as piores racionalizações da falsa moral e da pseudofidelidade a causas nobres.
Chico Xavier foi perseguido por líderes do movimento espírita, em sua juventude, apupado como vaidoso e obsediado, quando publicou seus primeiros livros, por apresentarem um mundo espiritual incompreensível para os figurões espiritistas da época; Bill Gates foi visto como garoto lunático e visionário megalomaníaco, por asseverar que poria um computador em cada residência da América e do mundo; e Alfred Kinsey, o cientista pioneiro do estudo da sexualidade humana, que liberou milhões de almas de titânicas angústias do universo afetivo, foi publicamente vituperado, como pervertido e charlatão.
O que no presente é visto como indecente ou impudico e amanhã será tratado com enorme naturalidade, no espaço de cinquenta ou cem anos? Há quem só tenha olhos para o hoje, como foram os medíocres de todos os tempos e culturas, sem lograr divisar além dos estreitos limites das convenções e pressupostos de verdade de sua época e educação.
Assim, Jesus continua a ser crucificado na pessoa de grandes profissionais incompreendidos, de almas nobres sacrificadas na forja do lar pelo amor aos seus entes queridos, de religiosos vanguardistas, de líderes científicos e culturais revolucionários. São hoje atacados; amanhã, serão aclamados.
Claro que há a perversão que recebe a alcunha de vanguarda e a perfídia que é apresentada como sinonímia de avanço. Porém, de todo coração e de plena consciência, amigo, sobretudo quando você foi ferido em seus interesses ou expectativas pessoais, como poderá você se sentir suficientemente isento para distinguir uma de outra categoria, no caso que você julga apropriado à acusação? A acusação, intrinsecamente, é um ato já tão delicado, que merece, previamente, suspeição e critérios redobrados.
Nesta era, por sinal, de profundo respeito pela diferença e pelas minorias, de tolerância à pluralidade e multiplicidade de elementos culturais, como poderá você discernir moral profunda de moralismo superficial? Tem você altura psicológica, intelectual e, principalmente, moral e espiritual, para produzir introvisões suficientemente seguras que o respaldem no expender bravatas condenatórias? Será que o lastro que põe para seus vilipêndios não passa de pura artimanha do inconsciente para abolir rivais ou adversários de suas ilusões de estabilidade e confiança, num universo previamente conhecido e entendido como melhor? É por isto que Jesus disse: “Não julgueis, para não serdes julgado”. E ainda: “Com a mesma medida com que medirdes, sereis medidos”.
E você, companheiro, que distende seu indicador em riste, acusando alguém do que supõe um crime, tem os demais três dedos opositores ao polegar apontando para si mesmo, em função de crimes talvez muito maiores perpetrados por você próprio, enquanto aquele que você assinala como abjeto pode, muito bem, ser uma alma nobre, deveras mais desenvolvida, acima de suas condições de compreensão, com quem você assume pesado débito, por tentar destruir o trabalho benemerente que não é dela, mas da Divina Providência, que a enviou ao mundo físico para semear progresso intelectual e transformação social e humana.
Fuja de toda postura discriminatória e intolerante. Viver em busca de culpados para os próprios problemas, confiar-se à paixão da perseguição a bodes expiatórios, permanecer magoado e sentindo-se vítima por atos ou omissões de outras pessoas são bem posturas íntimas e condutas típicas do preconceituoso em seu estado puro. Somente o amor e o espírito cordato de convívio pacífico com todos os tipos humanos, fundamentados no autorrespeito e no respeito aos semelhantes, constituem plenamente a moral cristã.
Cuidado com aqueles que ladram, como cães bravios, sustentando seus pontos de vista, à custa de achincalharem os valores alheios. Qualquer pessoa esclarecida e relativamente sensata logo flagra, em tais ervas daninhas da floresta humana, personalidades e caracteres perigosos de quem se deve evitar contato íntimo, e por quem apenas se deve orar, assim como fez o próprio Cristo, que pediu a Deus perdão por seus crucificadores, sem trocar uma única palavra com eles.
(Texto psicografado por Benjamin Teixeira, em 3 de abril de 2006.)
(*) “Guerra santa”.