Benjamin Teixeira
pelo espírito
Eugênia.


Estávamos próximos de completar duzentos anos de história cristã. Na segunda década do terceiro século deste calendário (*1), estávamos principiando o fim do mandato divino (*2) do Imperador que se fez célebre sob a alcunha “Caracala” (*3), e sofrimentos inomináveis se faziam ainda disseminar (embora menores, em relação aos dois séculos anteriores), na perseguição sistemática aos seguidores do Cordeiro de Deus.

Naquela tarde inesquecível, eu e meus cinco filhos, acompanhados do esposo amantíssimo, fomos aprisionados em pleno culto cristão, juntamente a inúmeros outros companheiros de credo, ainda realizado nas famigeradas catacumbas romanas.

Vários anos levara, no intuito de aprochegar os meus ao lindo ministério do Cristo, e, por fim, estava nos primeiros meses de “estado de graça”, pela divina mercê e felicidade de tê-los todos congregados, junto ao meu coração, sob a tutela de Nosso Querido Jesus e Sua Amorável Mãe, de Quem, embora não fosse ainda hábito à época, cultuava a imagem, secretamente, conversando longamente com Ela, por indeléveis ligações que cimentavam meu espírito ao da adorável Mãe adotiva da humanidade terrestre.

Destacados para a tortura, sistematicamente realizada, com o fito de nos conduzir à abjuração da fé que nos insuflava as almas, chegou, alta hora da noite, o instante de sermos conduzidos ao “poste de martírio”. Amarraram-me para os procedimentos de sevícia, próxima aos meus. Vendo-me ser torturada, sem qualquer laivo de piedade, com ferros candentes e instrumentos cortantes e contundentes, dois de meus filhos imediatamente prorromperam em impropérios contra os soldados implacavelmente cruéis, enquanto minhas três adoráveis filhas choravam e soluçavam amargamente, implorando misericórdia e clemência para mim. Meu esposo, a esta altura, jazia em aterrorizante silêncio, exangue, com o corpo a pender dos ferros, sem demonstrar quase sinais de vida, após torturas que imaginávamos, mas não poderíamos dimensionar, antes de ser trazido à nossa presença.

Não saberia descrever o horror daquela hora, para meu coração sofrido de mãe. As dores físicas me pareciam pequenas, ante a angústia moral que me gerava ouvir o soluço plangente de minhas amadas filhas e a cólera ensandecida de meus dois filhos homens. O desequilíbrio que os assolava fazia meu coração profundamente apreensivo, já que, à época, temia pela sua perdição eterna, por vacilarem no momento augusto do martírio que deveríamos arrostar, heroicamente, conforme os princípios vigentes, naquelas primeiras células cristãs da humanidade. Orava, como talvez nunca, em toda minha história de espírito orei, pela fé de meus filhos e sua salvação para a eternidade.

Após um tempo que não saberia precisar, em que os conclamava, dorida, à fé inabalável no Nosso Cristo e Salvador, meus filhos, um a um, abjuraram a fé ao Cristo de Deus, e eu, em lágrimas e com um sentimento de derrota moral intraduzível, continuei em minhas súplicas a Jesus que, logo mais, misturavam-se a dolorosos petitórios à Mãe Sagrada. Os maiores tesouros do meu coração haviam renunciado ao paraíso, para a minha interpretação daquela hora, para poupar–me da sevícia perversa a que era submetida. Foi quando, para minha inenarrável surpresa, os soldados, insaciáveis em sua sanha sádica, voltaram-se para mim, ensangüentada e contundida, e proclamaram, entre grunhidos semi-selváticos:

– Abjura, “cadela” cristã, ou verás o suplício dos teus, até a morte, um após outro.

Se houvesse um delíquio da alma, foi isso que se deu em mim. Uma espécie de torpor inqualificável, que me deixou em estado de choque, ao passo que, para meu maior tormento, uma força desconhecida, provavelmente oriunda do fundo amor que une as mães a seus filhos, manteve-me acordada, plenamente lúcida, para contemplar o indescritivelmente hediondo.

Começaram pelo meu primogênito… Céus!… Não tinha a mais vaga idéia, até então, de haver dor tão grande para uma mãe, para um ser humano. Esbofetearam-no, covardemente (estava sem condições de reagir, entre grilhões), crivaram-no de ferimentos profundos, e, num espaço de tempo que teria sido curto, não fora o infinito de minha dor, vi meu primeiro filho, aquele que amara loucamente, como primeira jóia da vida a me fazer sentir mãe, pender a cabeça e selar os lábios, para nunca mais falar. As três meninas e o outro varão misturavam lágrimas a exclamações de horror, enquanto os selvagens gargalhavam, vituperavam-me e me vilipendiavam, com adjetivos depreciativos, chamando-me a abandonar a fé.

Confiar em Deus acima de tudo, em Seu Amor, em Sua Justiça… Nunca me foi tão difícil, nem antes, nem depois, em toda a minha história de espírito eterno… Não conseguia responder às conclamações histéricas daqueles que ali se convertiam em verdadeiras “bestas” falantes: estava paralisada de terror!… Fui trazida de volta a uma certa condição de normalidade interior, quando ouvi duas de minhas meninas urrarem, como animais acuados à beira da morte, implorando-me piedade para o segundo irmão a que elas assistiriam ser seviciado e morto, em breves momentos, não articulasse eu, imediatamente, a negação de minha fé em Jesus. A terceira, que se lançara, após o início de minha flagelação, em silêncio místico, olhos voltados para o Alto, parecia um anjo em êxtase, aguardando o momento do testemunho supremo, exortando-me, involuntariamente, a copiar-lhe o gesto santo. O coração de mãe trespassada por uma dor sem-tamanho, porém, não me permitia seguir-lhe o lance magno de fé, e, aturdida, tentava acalmar as pérolas do meu coração, que, todavia, como nunca havia visto, fitavam-me com revolta e desespero, esperando e clamando por que eu negasse a fé no Cristo, para salvá-las e ao irmão do martírio medonho. O rapaz, que era o caçula, moço pouco saído da adolescência, gritava de modo bestial, temendo a morte dolorosa e iminente. Os soldados romanos, para completar, enchiam o ambiente com gargalhadas burlescas e modos obscenos, bolinando minhas meninas virginais, com rudeza, arrancando delas gritos de pavor e dor física, mesclados. Segundos eternos… segundos infernais… Pesadelo infinito…

Quando dois deles se aproximaram de meu “bebê” – assim chamava o mais novo – e iniciaram a tortura, não sei que força me fez preservar a consciência e não morrer ali mesmo, fulminada com o padecimento inaudito. Sentia apenas as lágrimas copiosas rolarem sobre as faces intumescidas com as contusões sofridas, e, como um raio, sobreveio-me a dúvida, medonha dúvida. Estaria mesmo certo eu permitir que todos os meus rebentos fossem seviciados à minha vista, conduzidos paulatinamente à morte, de forma tão dantesca? Não me caberia, naquele momento culminante de inenarrável sofrimento de quem deveria proteger e zelar com a própria vida, denegar minha fé, destarte salvando-os, para, tão-somente, depois, retomar à condição de profitente cristã, em outras circunstâncias, seguras para eles e até para mim? Mas isto seria mentir, burlar, e, naqueles dias, em que o relativismo conceitual e cultural dos tempos atuais simplesmente não existia, não havia suficiente madureza intelectual para tais reflexões ambíguas. Negar em algum momento a fé no Cristo constituía ingratidão imperdoável para com o Divino Amor. A dúvida, com isto, se me instalou, cruel, como uma espada a transpassar meu coração que, ainda, por algum milagre oculto, continuava a bater, precípite, no peito dorido. E, por um momento, quase gritei a abjuração de minha fé, quando, então, desferi, de reversa maneira, um brado místico de louvor, de socorro, de terror:

– Jesus!!!!!!!………………..

A esta altura, a sala inundou-se, para minha visão espiritual, de uma explosão feérica de Luz. E, obstúpida, assisti à cena indescritível da Mãe Amantíssima da Humanidade surgir-me à frente dos olhos embaçados por grossas bagas de lágrimas, a dizer-me, sem palavras:

– Acalma-te! Acalma-te! Nosso Jesus vela! Nosso Jesus vela!

Entrei no mesmo deslumbramento místico de minha terceira filha, que, naquele paroxismo indizível de emoções, voltou os olhos para mim, em lindo sorriso de anjo, demonstrando acompanhar o mesmo quadro espiritual que contemplava e, curiosamente, ouvi sua voz dentro de minha cabeça soar, cristalina e doce:

– Tranqüilizemo-nos, mamãe! Sei que é mais difícil para ti este momento de dor mastodôntica, mas nada escapa ao Divino Olhar!…

Terminado de dizer isto, meu doce anjo em forma de filha perdeu os sentidos e a vi nitidamente ser retirada do corpo físico, antes que o martírio lhe começasse, de modo que, quando os romanos investiram contra ela, aperceberam-se do inopinado de sua inanidade e, após estéreis tentativas de despertá-la, para se deleitarem com seus gemidos de dor, cansaram-se e desferiram-lhe um certeiro golpe mortal na jugular, que jorrou breves esguichos de sangue, sem que, de minha parte, compadecesse-me do trapo orgânico que sabia não ser mais minha filha, que sorria ante mim, já ladeando a figura da Mãe Amantíssima (*4).

Talvez porque me percebessem em estado inexplicável de deslumbramento espiritual, com um sorriso místico a se me desenhar nos lábios, minhas duas queridas filhas se abriram às vibrações dulcíssimas da Mãe de Jesus e Seu séqüito divino, e, com isto, transfiguraram completamente o estado de espírito e as expressões de fala e conduta, pondo-se a cantar hinos, em voz alta, em louvor a Nosso Salvador. Para lhes dar energia no clímax de testemunho, consegui romper o silêncio e dizer-lhes:

– Filhas muito amadas, vossa irmã está bem! Os dois meninos estão sendo tratados, e são agora carregados pela Mãe de Nosso Senhor Jesus e uma legião de Santos (*5), que vieram buscar-nos para o Reino dos Céus! Tranqüilizem-se! Tranqüilizem-se! Nossa hora de partir para o paraíso chegou, chegou!

Transfundidas elas mesmas em anjos encantadores, minhas queridas meninas, embora não divisassem o quadro que eu descortinava pela psicovidência, puseram-se a cantar ainda mais ardentes de fervor e de alegria, no júbilo inefável e sagrado dos “santos dos primeiros dias”, a ponto de gerar pasmo e temor supersticioso, entre os quatro asseclas do Mal, que nos flagelavam e flagiciavam, na masmorra úmida e infecta. Dois deles, então, sugeriram suspensão do massacre, e um terceiro caiu em silêncio enigmático, observando minhas duas meninas em prece cantada e a mim mesma, num sorriso lirial de paz, balbuciando algumas palavras e notas dos hinos religiosos por elas interpretados, aqui ou ali, quanto me permitiam as horrendas dores na boca e nas faces maceradas. O quarto elemento da soldadesca iníqua, todavia, que demonstrava, nas feições patibulares, maior dose de insensibilidade e de ímpetos diabólicos, como que acordado de um susto inesperado que lhe roubara provisoriamente a lucidez, sacou de uma espada e acertou, em dois movimentos ligeiros, o peito de minhas duas filhas tão adoradas, que silenciaram, quase sem vagidos, o canto angelical a que se dedicavam, encerrando sua sanha demoníaca, com um outro rápido lance assassino, sobre o peito de meu inconsciente consorte, como se desejasse impedir, com impulso eficaz e veloz, a sustação dos propósitos homicidas que ali o reunia aos colegas de barbárie. Ato contínuo, vi os meus queridos sendo recepcionados pelo cortejo de anjos que acolitava a Mãe Sagrada, arrebatada por uma ventura de todo indescritível.

– Recebe, Mãe Amorosa, nossas almas, em Teu Seio Maternal – consegui dizer, por dentro, em súplica silenciosa, ébria de esperança.

Para minha não tão grata surpresa, contudo, a Mãe Sacrossanta, ainda sem palavras, pela linguagem universal do pensamento, notificou-me que desejaria de mim um último “favor”. Gostaria que desse meu testemunho aos que ficaram para trás, tornando às igrejas nascentes e relatando meu caso pessoal aos discípulos de Jesus, naqueles dias tão amargurosos de nossa história cristã. Minha narrativa seria um estímulo à fé de todos, e, com isto, contribuiria, efetivamente, pela manutenção do ideal cristão nos corações de muitos.

Dito isto, seu cortejo de Luz lentamente se diluiu, ante meus olhos estupefactos, e pude ouvir ainda as palavras derradeiras dos soldados que se afastavam, espavoridos, acusando-me, triste ironia, de bruxaria e de pacto com forças ocultas do mal.

De fato, sobrevivi, ainda, em quase três lustros, aos eventos aqui relatados. Viajei por toda parte, patrocinada, nestas iniciativas, por esforços verdadeiramente heróicos das antigas células cristãs daqueles dias tormentosos para nossa comunidade de fé. Norte da África, Oriente Médio, e, em Roma, mormente, estive, contando e recontando minha história um sem-número de vezes, não sem me debulhar em lágrimas, inalteravelmente, como se fosse o primeiro dia após o ocorrido, sempre.

Ao final de quase 14 anos de enfermidades e perseguições sistemáticas, mas também de satisfação em ver os olhos embevecidos de fé, fortalecidos e renovados na esperança, de muitas almas (*6) sofridas e santas daqueles primeiros momentos do cristianismo primitivo, descansei meu corpo desgastado, vindo a me unir aos meus e à doce Mãe de Jesus que, misericordiosamente, veio-me, em Pessoa, buscar na aduana da Outra Dimensão, tomando-me nos braços, rodeada por todos os meus tão amados tesouros do coração, o esposo e os cinco filhos, impregnando-me num transporte de felicidade que jamais encontraria, na pobre linguagem humana, meios de ser descrito.

Em meio a tanta alegria, entretanto, uma tristeza tisnava o meu coração, e assim ficou comigo, desde o dia do suplício medonho dos meus, até cento e cinqüenta anos depois, quando me redimi, ante a própria consciência, pedindo prova redentora e novo martírio, em condições semelhantes, mais uma vez jungida à carne, no século quarto da Era Cristã. Que tristeza seria esta? Minha dúvida, aquele átimo de tão mal-fadada dúvida, por que não me perdoei, a não ser quando tornei sobre os próprios passos e repeti o mesmo testemunho de fé, um século e meio mais tarde. A dúvida que representava, implicitamente, para mim, ingratidão e desserviço à causa de Deus, e pelo que, condenada inapelavelmente, no tribunal de minha própria consciência, sentenciei-me a novo martírio espetacular, para que provasse, a mim mesma, estar à altura da fé e da bondade de Deus, que me agraciara o espírito limitado, sob a bendita alcunha que muitos ostentam hoje, lamentavelmente, de modo leviano e despreocupado: “cristã”.

Nesta era de tantas facilidades, nesta época em que tudo é tão leve e simples para os seguidores de Jesus (de um modo geral) e mesmo para seus mais novos discípulos, os espíritas kardecistas (*7), muita lamentação improdutiva e infantil sobe aos Planos Superiores de Vida, provocada por contrariedades de somenos importância, nos testemunhos e desafios que são, em verdade, exercícios indispensáveis ao desenvolvimento da fé.

Por isto, pelo bem dos que me lêem, para que não desperdicem preciosas oportunidades de crescimento, realização e mesmo de felicidade, declaro – aqui representando meus condiscípulos no martírio dos tempos idos do cristianismo primevo – em função dos flagelos, inimagináveis para hoje, que padecemos, em eras prístinas, para que, atualmente, nossos irmãos encarnados companheiros do ideal cristão sofressem tão menos, conclamamos-lhes os corações, com todo amor que podemos sentir:

Sintamo-nos honrados, amigos, quando nos sentirmos perseguidos ou caluniados, atacados ou desprezados, por trazermos, na fronte e no peito, as insígnias sagradas da fé verdadeira (porque vivida em amor ao próximo e serviço à causa espiritual) a Nosso Senhor Jesus Cristo. Que nos empenhemos, diuturnamente, com toda disposição ao sacrifício e até mesmo à renúncia da felicidade pessoal, se necessário for, para que a Causa Maior do Cristo não pereça ou sofra qualquer prejuízo. Que arrostemos todas as dificuldades, superemos toda adversidade e transponhamos todos os obstáculos, rumo às metas que nos apontam a consciência e o coração inflamado pelo ideal!… Que jamais vacilemos na fidelidade aos compromissos assumidos com Deus e os que O representam, de elevadas esferas espirituais! E tenhamos a certeza: toda dor é insignificantemente e pálida, ante a Luz imarcescível e infinita do Amor Divino, que nos aguarda, de todo o sempre, para todo o sempre, na eternidade sem fim…

(Texto recebido em 10 de abril de 2005.)


(*1) Eugênia faz alusão ao nosso calendário gregoriano-cristão, portanto referindo-se especificamente ao período 210-220 de nossa Era Cristã.

(*2) A mentora espiritual faz referência ao fato de que soberanos, como quaisquer outras autoridades, ocupam seus postos com chancela divina.

(*3) Marco Aurélio Antonino Bassiano.

(*4) Posteriormente, revelou-me Eugênia tratar-se esta sua filha do passado o respeitabilíssimo espírito de Celina, emissária direta da Mãe de Jesus. Por aqueles dias, verdadeira plêiade de almas nobres estava jungida a corpos físicos, em trabalhos missionários de substancial relevância, na consolidação do cristianismo nascente.

(*5) Termo utilizado, nos primeiros tempos do cristianismo, para designar as almas dos justos, componentes da Espiritualidade Superior, sem nenhuma correlação com o processo de “canonização”, hoje levado a efeito pela cúpula católica.

(*6) Eugênia faz uso da terminologia clássica espírita, em que “alma” significa: o espírito quando reencarnado.

(*7) A redundância foi proposital, já que a confusão entre “espíritismo-cristão” (já também um pleonasmo) com as correntes mediunísticas não-kardecistas tem se expandido no vocabulário popular.

(Notas do Médium)