Crônicas de Gustavo Henrique
Benjamin Teixeira
pelo espírito Gustavo Henrique.
O casarão regurgitava de gente.
Melina estava com 16 anos. Era o seu aniversário tão esperado. Seus pais houveram prometido que, quando debutasse, passado o ano de luto obrigatório por decorrência da morte de seu avô paterno, teria a mais primorosa e elegante festa de debut que a cidade já vira.
Ah… a juventude e seus encantos. Melina se enamorara de um rapaz pouco mais velho que ela. Carlinhos não teria mais que 18 anos. Acabara de chegar de Paris. Fora estudar na capital francesa, e retornaria à Meca cultural do mundo, dentro de dois meses, para cursar faculdade de Direito.
A suntuosa carruagem parou em frente à linda mansão da Tijuca, onde morava a debutante e sua família e onde era realizada a faustosa festa. Até mesmo o Imperador era aguardado no salão, àquele dia, e a princesa Isabel já prometera presença. Mas entre todas as autoridades, embaixadores de vários países e toda a corte reunida, ninguém era tão aguardado como Carlinhos, pelo coração de menina-moça de Melina. E… sim!… era ele. O coração de Melina quase salta pela boca, precipite.
Carlinhos desceu da carruagem, ao lado de seu pai, o cônsul inglês no Brasil, e seus olhos azuis visivelmente procuravam por alguém, logo cruzando com o par de olhos cor de mel de sua amada brasileira. Avançando à frente de seus pais, quebrando um pouco o protocolo, o garbosíssimo rapaz curvou-se ante sua adorada, com educação impecável, e após um sorriso rubro de felicidade, depositou, em sua destra, um doce e demorado beijo, após dizer, com seu nítido sotaque britânico, no francês corrente e obrigatório, nessas ocasiões em que a alta cúpula do país estava reunida, ao menos para aqueles que desejavam demonstrar maior finesse:
– Enchanté mademoiselle (*).
Melina queria parar o tempo. Era o seu sonho de menina-moça inteiramente realizado. Não queria mais nada. A orquestra tocava uma valsa de Strauss, a luz esfuziante do ambiente (luz a gás), cintilando nas jóias caríssimas que todas as damas exibiam ostensivamente, o aroma de diversas fragrâncias francesas: tudo era graça e fascínio, encanto e felicidade…
Quando Carlinhos (como chamava: Charles era seu nome), voltar a cruzar olhos com os seus, Melina se curvou, puxando delicadamente a ponta do vestido balão, abaixando a cabeça enquanto flexionava os joelhos, como determinava a convenção, que fez pender mimosa mexa de cabelos castanhos claros sobre o início do colo, e, olhando-o de volta… zás! Voltou do transe hipnótico.
Melina, hoje, não se chama mais Melina, mas Décio. Reencarnou em subúrbio de metrópole brasileira. E, próximo da casa de 30 anos, resolveu procurar um terapeuta de regressão de memória, para tratar seu “problema sexual”. Décio se sente uma mulher aprisionada em corpo contrário às suas tendências psicológicas e, apesar de não portar distúrbios do comportamento sexual, nem carmas sérios na área, precisou nascer “invertida”, a fim de trabalhar sua falta de iniciativa e sua tendência secular de sempre depositar, nas presenças masculinas de sua vida, fossem o pai, os irmãos, o marido ou o filho (quando mais velha) os destinos e todas as decisões sérias de sua vida. Assim, aceitou reencarnar na condição masculina, por sugestão de seus guias espirituais, sofrendo, atualmente, de diversos transtornos emocionais, entre eles ansiedade e “síndrome do pânico”, todos associados ao pavor que sente de se ver responsável inteiramente por si, já que é “homem”. Apesar disso, porém, ainda sente a irrefreável tendência de procurar fora a solução de seus problemas, vivendo a milenar fantasia de seu espírito de encontrar o “príncipe encantado” que a retirará de seu reino pessoal de angústia, raptando-a para o seu reino de bem-aventurança e paz. Melina, todavia, nunca conseguirá engatar relacionamento afetivo duradouro, enquanto não resolver a questão capital de seu espírito, motivo de sua atual existência física: ser e sentir-se completamente auto-suficiente. Somente então estará adequada, psicologicamente, a assumir compromissos conjugais mais sérios.
Que as muitas Melinas que me lêem agora prestem bem atenção a essa história, estejam em corpos de homem ou de mulher. O salvador de si, o líder de si, o preenchedor de si é sempre o Si Mesmo. Que se assimile integralmente essa idéia, a fim de que se abreviem sofrimentos e evitem-se padecimentos ainda maiores e, é claro, propicie-se, o quanto antes, o sonho de um grande romance, que, entretanto, só acontecerá, quando a princesa interior sentir-se inteiramente satisfeita e feliz com sua própria companhia. Somente assim, então, o príncipe encantado aparecerá, não para completá-la, mas para com ela constituir uma magnífica parceria de destino, rumo, juntos, ao paraíso, ainda agora, em plena vida física.
(Texto recebido em 12 de fevereiro de 2004.)
(*) “Encatado, senhorita”. Pronuncia-se: “Anchantê, madimoséli”
(Nota do Médium)