(Benjamin Teixeira de Aguiar)
– Eugênia, há aproximadamente 10 anos, recebi em consultório um homem, a meu ver, muito decente, que revelou a fraqueza de manter vínculos conjugais com mais de uma mulher ao mesmo tempo. Isso me fez entabular, pela primeira vez, um diálogo com você sobre o assunto, embora você haja se mantido à época enigmática, em certa medida, e não me tenha autorizado trazer nada a lume.

A posteriori, tive oportunidade de ler a autobiografia de Carl G. Jung, em que o insigne autor se declara polígamo. Considero Jung um dos maiores gênios do século XX, um mestre da Espiritualidade que reencarnou com grandiosa missão em nosso orbe. No tocante à poligamia, ele expôs um ponto fraco de seu caráter ou, ao contrário, demonstrou excepcional coragem em admitir publicamente algo que não chega a ser uma falha psicológica ou moral?

(Eugênia-Aspásia) – Primeiramente, é preciso fazer uma distinção muito clara entre poligamia e promiscuidade, entre infidelidade consentida e “amor livre”, entre tendência-experiência poligâmica e sexo casual assumido, que é um vício como qualquer outro. Segundo, a vivência da poligamia sempre existiu na espécie humana e sempre existirá, enquanto houver interação sexual entre pessoas.

Explicando-nos: as regras de relacionamento sexual foram cunhadas em função da reprodução humana e da instituição da família, tendo em vista o zelo com a prole. À medida que a humanidade adentra uma nova fase civilizatória, em que os aspectos meramente reprodutivos da sexualidade perdem importância gradativamente, elementos antes condenados como heréticos, na conduta sexual, vão se tornando situações sociais aceitáveis e mesmo indicativas de modernidade aprofundada, aplicada e vivida.

A emancipação feminina (que leva o homem a se sentir liberado do papel de provedor exclusivo do lar); a relativa aceitação da homossexualidade (que, em tese, não implica a reprodução, apesar de muitos casais gays deixarem descendência); a queda da imposição da virgindade (que, no passado, garantia ao nubente a não fecundação de sua noiva por outro homem); a validação do divórcio (que, há poucos decênios, podia lançar toda uma família na penúria extrema), entre outras significativas mudanças, espocam em diversos segmentos populacionais, sobremaneira em nações mais cultas e desenvolvidas em termos tecnológicos e socioculturais. Observemos, em especial, os índices de prosperidade econômica e política das democracias pós-industriais, que conferem ao indivíduo um coeficiente de liberdade sem precedentes na história da humanidade.

Estatutos religiosos opressivos e manipuladores, que foram bem-vindos em certas épocas e em comunidades de outrora, em verdade tão só patenteavam o interesse coletivo em vigor, revestindo-o com uma aura de indispensabilidade incontestável. Não mais hoje, todavia.

(BTA) – Nossa, Eugênia, isso é extremamente polêmico!…

(EA) – Não tanto. O Espírito André Luiz, no clássico “Nosso Lar”, de autoria mediúnica do inolvidável Chico Xavier, refere-se ao caso curioso de um homem que coabita com duas esposas de sua pregressa existência. Conquanto ali não se fale em bigamia, nos dizeres terrenos, a passagem lembra perfeitamente a constituição das famílias atadas à superfície planetária, em que comumente renascem, na condição de filhos(as), antigos cônjuges de um(a) ou de ambos(as) os(as) componentes do casal, para darem continuidade ao aprendizado compartilhado, século sobre século.

(BTA) – Então, não havia sexo, como você mesma esclareceu.

(EA) – Nunca há, meu filho, nem mesmo com a esposa com quem a personagem entretece laços mais sólidos de afinidade, aquela que ocupa, com mais “legitimidade”, a posição de sua consorte espiritual. No Plano Maior, como se sabe, não existe a fricção de corpos, característica da cópula animal, imprescindível à procriação. A aproximação psíquica, com permuta de forças mentais, é suficiente para que se desfrute a satisfação profunda de alma a alma.

(BTA) – Você quer dizer então que pode existir, na dimensão física, a necessidade de sexo com mais de uma pessoa, em laços dessa natureza?

(EA) – Sim. Mas não se trata de algo imperioso. Pode ocorrer ou não. É muito comum, nas relações humanas, percebermos vínculos esponsalícios entre pessoas que não mantêm intimidade sexual. Por exemplo: sócios(as) de um empreendimento profissional, parceiros(as) de trabalho bastante harmônicos(as), amigos(as) afinados(as), familiares sinérgicos(as). Vivem eles(as) formas veladas de poligamia, firmando consórcios espirituais que favorecem a troca de elementos fertilizadores entre seus psiquismos e estimulam, por múltiplos, concomitantes e progressivos meios, a produtividade, a criatividade, a motivação, a fraternidade, a felicidade. E, com isso, todos(as) sempre ganham…

É o egoísmo humano, com seu exclusivismo possessivo e controlador, que urde as teias mefistofélicas da castração a dois, em que, não raro, inimigos(as) se intoxicam mutuamente, adoecendo corpo e espírito, pela antipatia correspondida e retroalimentada, décadas a fio. Muitos casamentos de fachada são perpetuados apenas por interesse patrimonial ou social, em nome da preservação das aparências, quando não existe unicamente, a motivar a permanência dos elos corrompidos, o medo da solidão, do abandono, da rejeição.

(BTA) – Nossa!… Eugênia!… Tem certeza de que este diálogo deve ser publicado?

(EA) – Sim.

(BTA) – Muitos(as) se chocarão.

(EA) – Sabemos disso. Mas nos serão gratos(as) no futuro. Atualmente, os(as) polígamos(as) vivem na clandestinidade, quais os(as) homossexuais de gerações passadas e até de hoje, em vários rincões atrasados do globo. Por sinal, quantos(as) se declaram gays, no presente, mesmo em ambientes ultracivilizados? Ainda constituem uma minoria. Nas sociedades do porvir, tanto homossexuais como polígamos(as) estarão livres para viver sua aliança de ventura e criação, sem vulgaridade, promiscuidade ou apego a viciações sexuais, que nada têm a ver com o que aqui estudamos.

(BTA) – Curiosamente, quando você fez referência à não obrigatoriedade do conúbio sexual, lembrei-me de uma conversa que tive com meu companheiro, Delano Mothé, há poucos meses. Confidenciei-lhe, de súbito e em tom grave, que me encontrava numa relação a três, perguntando-lhe, em seguida, se isso o incomodaria. Meu pobre consorte fez uma expressão de espanto e angústia, a princípio, mas abriu enorme sorriso de alívio, quando elucidei que me sentia casado com você, adorável Eugênia…

(EA) – Exatamente. A sinergia psíquica profunda é o que caracteriza a união conjugal. Note que isso deixa espaço a interpretações variegadas, e muitos(as) leitores(as), provavelmente com razão em alguns pontos, discordarão dessa nossa conceituação ampla de poligamia. Mas cada qual, na câmara secreta da própria consciência, pode averiguar se vive um matrimônio com alguém, mesmo que não haja intercurso sexual nesse relacionamento.

A identificação desses liames propicia uma melhor administração da existência, porquanto os “cordões de bronze”1 que se estabelecem entre tais “esposos(as) do espírito” são sumamente poderosos e devem ser considerados em qualquer tomada de decisão séria, para que as descompensações energéticas, oriundas de eventuais negligências no campo dessa realidade psíquica subjacente, não acabem fomentando o indesejável e, por conseguinte, frustrando o essencial: o bem que se pode concretizar no próprio e no destino de terceiros.

Há pais e mães “casados(as)” com uma filha ou filho, e nenhuma iniciativa definidora de rumos é sustentada sem a anuência desse(a) “consorte espiritual”, não importando se o “cônjuge do corpo” aprove ou não a deliberação. CEOs de grandes corporações criam visíveis ligações eróticas (desprovidas de sexo) com determinados(as) assessores(as) – ainda que do mesmo gênero, sendo ambos(as) heterossexuais –, e a fermentação recíproca de ideias é óbvia para qualquer observador(a) que se permita analisar, com mais cuidado, o intenso processo de fertilização psíquica que realizam para promover as obras sob sua responsabilidade.

Vemos aqui, inequivocamente, a “libido” da terminologia freudiana, que não é outra coisa senão a energia para a vida. O bebê projeta esse impulso-necessidade no seio materno, sugando-lhe a linfa salvadora, assim como, mais tarde, a alma redimida volta-se para a Transcendência, nutrindo-se das Vibrações Sublimes que dimanam de Deus e Seus(Suas) Representantes, num fenômeno bem denominado de “teotropismo” – termo concebido por um emissário de nossa Esfera de Ação que, reencarnando no século transato, celebrizou-se como um emérito filósofo2.

Recordemo-nos de que os preconceitos são cancros demasiado persistentes na mente de indivíduos e coletividades inteiras. Somente pela superação de atavismos primários, poderemos ascender às Excelsitudes da Faixa Angelical, em que o sexo, como encontro físico-afetivo íntimo (conforme a perspectiva humana), terá sido de todo abolido, ao passo que o amor, pujante, deslindado de peias e castrações aviltantes, manifestar-se-á de infinitos modos e em todas as direções possíveis, sem qualquer distinção de pessoas. Medite-se nisso…

Gostaríamos de explicitar, entretanto, particularmente a quem se sinta um pouco mais confuso(a) com as ponderações que apresentamos: na dúvida, prezado(a) amigo(a), siga a bússola infalível de sua consciência, fazendo uso da ferramenta básica para a solução de pendências intrincadas, proposta por Nosso Mestre Jesus: “Conhece-se a árvore pelos frutos”3.

(BTA) – Eugênia, posso fazer uma última provocação sobre a temática?

(EA) – À vontade.

(BTA) – Allan Kardec, abordando o assunto, obteve dos Espíritos de escol que o inspiravam a resposta de que a monogamia e o casamento eram índices de progresso e de afastamento da selvageria animal. Isso não entra em contradição com suas assertivas?

(EA) – Não. Kardec mesmo asseverou que as contradições havidas em ditados da Espiritualidade Superior eram, via de regra, aparentes. Lembremos, antes de tudo, que o contexto histórico era outro. Temas dessa envergadura de delicadeza e complexidade não poderiam ser abertamente ventilados por aqueles dias. As próprias Inteligências comunicantes disseram-lhe que ao futuro estariam reservados relevantes esclarecimentos sobre tópicos ainda proibitivos para a época, declarando, como base principiológica das mais importantes, que a escola de pensamento espiritista deveria crescer e ser reformulada, à proporção que novos conhecimentos e costumes, com a insopitável evolução dos povos, tivessem ocasião de acontecer.

Naquele tempo, o sexo era visto apenas como uma premência fisiológica. Algumas criaturas, que ainda hoje assim enxerguem a sagrada função sexual, deverão continuar sofrendo a norma geral da contenção disciplinar dos instintos. Outras, contudo, que já alcançaram patamares mais altos de sofisticação psicológica, de refinamento emocional e psíquico, seguirão adiante com suas aspirações correlatamente mais depuradas, complexas e profundas, ou – numa palavra de viés eminentemente filosófico – paradoxais, mas que se afiguram ambíguas e questionáveis, para óticas mais estreitas, superficiais e preconcebidas.

Há personalidades que, para se absterem de praticar maldades, ainda precisam imaginar Deus como um Ser ministrador de castigos eternos. Por outro lado, existem aquelas que, ligeiramente mais amadurecidas no carreiro evolutivo, necessitam entender que serão punidas com o carma, se não atenderem a voz de sua consciência – como se não fosse bastante o mal-estar consigo próprias, gerado pela perda do sentido de propósito e a consequente sensação de desvio de rota.

Realmente, de más condutas advêm resultados por vezes desastrosos, que podem ser interpretados como provenientes da Justiça Divina ou da lei do carma. A questão, no entanto, é que cada indivíduo deve buscar, além do exame de causas e efeitos do erro cometido, o quadro de valores de que carece, para o seu adiantamento intelecto-moral e a melhoria das condições de bem-estar e paz partilhados com seus semelhantes.

Dessarte, enquanto uma expressiva parcela dos habitantes da crosta terrestre estagia na linha rasa da moralidade média, corações nobres encarnados adejam em Altiplanos Espirituais, no diapasão do poder exercido judiciosamente em prol do bem comum, sem jamais se confiarem a atitudes fraudulentas, não por receio de serem descobertos ou castigados, mas por terem aversão ao mal e sentirem atração natural pelo bem. Para estes, o jugo da obediência findou-se, já que vivem o reinado absoluto da consciência. Mesmo que padecendo amargas consequências por suas escolhas não convencionais, embora não necessariamente anticonvencionais, perseveram, impertérritos, em suas opções extraordinárias, no intuito de catalisar o desenvolvimento das moles humanas e acelerar o advento da era da felicidade e da concórdia universais, que um dia imperará sobre a Terra, para nunca mais ter fim.

Evoquemos a figura de Joana d’Arc, queimada viva por heroicamente não renegar a Voz dos(as) Imortais e por inclusive, em pleno obscurantismo medieval, rejeitar roupas femininas… Rememoremos os vultos de João Huss ou Giordano Bruno, que se permitiram imolar pela fidelidade inarredável às suas convicções científico-filosóficas… Há-os ainda hoje, os(as) mensageiros(as) do futuro, como igualmente não se extinguiram as fogueiras ateadas pela sanha fundamentalista e retrógrada de diversas ordens.

As piras ardentes, em que crepita o fogo da intolerância e do ódio a minorias, continuam fazendo suas vítimas e impingindo-lhes dores provavelmente maiores que as de uma mera combustão até a morte… porque as labaredas da atualidade são amiúde mais subjetivas, sutis e metafóricas, quanto sorrateiras e prolongadas, consumindo aos poucos seus(suas) mártires, ano sobre ano, década sobre década, para só serem aplacadas quando os ventos da história soprarem sobre comunidades reacionárias e lograrem compeli-las a páramos mais altos de civilidade.

Benjamin Teixeira de Aguiar (médium)
em diálogo com Eugênia-Aspásia (Espírito)
24 de outubro de 2008

1.Vide Alimento energético”, Benjamin Teixeira de Aguiar (médium), por Eugênia-Aspásia (Espírito), 2002.
(Nota da equipe editorial)

2. Huberto Rohden.
(Nota do médium)

3. Mateus 7:16.
(Nota da equipe editorial)