Benjamin Teixeira
pelo espírito
Eugênia.

Contada e recontada em diversas versões, desde a Antigüidade e do Oriente até os dias de hoje, com espetaculares versões hollywoodianas, a história de Cinderela, podemos ousar afirmar: não se trata de uma mera fábula ou de um conto da carochinha, mas constitui um poderoso mito, um arquétipo da mente humana, a se exprimir em diversas culturas e épocas da humanidade.

Muito embora histórias infantis sejam respeitáveis, não só por seu efeito moralizador e educativo para as crianças, mas como grande campo de prospecção psicológica para estudiosos da alma humana, o conto de Cinderela revela algo maior e mais profundo, o que aqui, muito perfunctória e rapidamente, abordaremos, sem tomar, propriamente, a perspectiva exegética, também muito válida, do “complexo de Cinderela” (*1), uma inteligente leitura do mito, para funções libertadoras, psico-sociais, da mulher moderna. Tomaremos um prisma mais amplo, que englobe toda a humanidade, e não apenas os componentes do gênero feminino da espécie.

Cinderela somos todos nós, seres humanos, sujeitos ao império de injunções madrastas, vida afora, que precisamos nos libertar do passado ignominioso de entraves e preconceitos, para avançar, seguros, para o amanhã de grandes realizações. Façamos uma leitura dos símbolos principais e suas conclusões implicadas na história.

Cinderela é o ego frágil do ser humano, nas primeiras fases de amadurecimento psicológico. Vulnerável e sem norte (era “órfã de pai e mãe” – era “rica” (tinha bom padrão emocional e espiritual na infância), mas, adentrando a adolescência, torna-se amarga e céptica, “pobre e rejeitada”), submete-se ao império dos instintos mesquinhos de sobrevivência: a frieza calculista da “madrasta”, a futilidade mesquinha das “filhas da madrasta”, a pobreza de possibilidades e de alegria de uma vida de humilhações conseqüente a este padrão de consciência.

O “Rei” (o Self, o centro superior da supra-consciência) resolve promover um “baile” (uma circunstância existencial para fermentar os elementos da psique), a fim de que seu “filho”, o “príncipe”(o ideal possível de ser realizado atualmente, conforme o nível evolutivo da consciência) possa encontrar uma “noiva” para se “casar” (ou seja: um canal de manifestação para o mundo prático, vinculando-se, objetivamente, a ele: “cansando-se” com a realidade).

O ambiente feérico e luminoso do palácio deixa bem claro tratar-se, alegoricamente, do campo dos grandes ideais e possibilidades infinitas da consciência, que precisam descobrir uma forma de serem expressos no mundo “real”, ou seja: o mundo das formas externas.

No dia em que o baile é realizado, imediatamente as duas irmãs colaças de Cinderela e sua madrasta (respectivamente: a inveja, a ambição e cálculo rasteiro dos interesses e dos ganhos pessoais) apressam-se a arrumar-se, fazendo Cinderela cansar-se em arrumá-las (o ego posto a serviço das emoções e prioridades menores da consciência) mas, como reza o mito, por mais tente se “embelezar”, ou seja: “maquiar” sua verdadeira natureza vil, permanecem feias e desengonçadas, como de fato são as paixões subalternas, sobremaneira para as coisas do espírito (para o “ambiente da corte real”).

Eis que então, o ego em andrajos (“Cinderela”, como a “gata borralheira”), ao perceber sua sorte “madrasta”, resolve elevar o olhar para o “céu” e orar, lembrando-se de sua mãezinha desencarnada. É quando lhe aparece a figura paradisíaca de sua “fada madrinha”. Neste instante, algum teórico de psicologia profunda poderia aventar a hipótese de Cinderela (ou o ego, o centro decisório da psique) haver invocado as potências da sua supra-consciência, e, de fato, neste caminho de interpretação, não estaria de todo errado. Todavia, não podemos deixar de reconhecer, nesse aspecto da intervenção externa de uma inteligência exterior benévola, a assistência contínua dos bondosos guias e protetores espirituais da criatura, sempre prontos a aproveitar as mais singelas ocasiões de interceder para beneficiá-las.

Neste ponto, então, a “fada madrinha”, pede, por meio da inspiração, para “Cinderela” ofertar-lhe o pouco que poderia tirar de si, a fim de realizar a “mágica” da multiplicação dos recursos, pela potencialização de forças que o Plano Superior pode levar a efeito. Este ponto alegórico é de capital importância, já que nunca o Plano Superior faz concessões gratuitas, mas, tão-somente, como auxiliares e catalisadores evolutivos, fermentam o que já existe, dinamizando elementos da própria psique dos tutelados, fazendo-os andarem com as “próprias pernas” e condições pessoais, ainda que assistidos e conduzidos.

É quando Cinderela oferece a humilde abóbora de suas energias espirituais incipientes, os ratinhos sujos de suas muito embrionárias e ainda “mal-formadas” intenções de agir no bem, os lagartinhos rastejantes de sua disposição de crescer e o cão humilde de sua boa índole e boa-vontade, com o que, respectivamente, a “fada madrinha” “transforma-os” em: uma rica carruagem, belos corcéis, lacaios magnificamente aprumados e um cocheiro a conduzir a diligência. Até mesmo o vestido humilde de Cinderela, a desbotada e velha personalidade complexada e neurótica, por influência da “fada madrinha”, converte-se em esfuziante e carismático caráter, em condições, assim, de encantar o “príncipe”, ou seja: de unir-se ao seu ideal superior de fazer o bem e tornar-se um ser humano melhor.

O primeiro encontro com os ideais superiores, para a criatura humana, é como o baile em festa: luzes, cores, riqueza de idéias e sentimentos, mas o encontro, embora fabuloso, é rápido e frustrante, e Cinderela tem que partir veloz, de volta, com as doze badaladas, ou seja: precisa retornar ao padrão habitual de sua consciência, ainda não habituada àquele nível superior de valores e interesses nobres. O fato de ser à “meia-noite” o instante da “quebra do encanto” é bem significativo, se pensamos que a meia noite representa o ápice da escuridão e que, nas horas seguintes da madrugada, o silêncio da vida metaforicamente representa o silêncio da mente consciente, mergulhada no mundo sombrio do inconsciente e da sombra psicológica, do lado reverso da personalidade, que precisa ser integrado à consciência, por longo e laborioso trabalho de auto-descoberta.

Cinderela, assim, depois de conhecer seu ideal superior, precisa voltar ao “mundinho” de sua condição de “serva do lar” dos interesses subalternos de seu ego, cheio ainda de desejos e intenções “baixos”, para fazer o esforço da integração psicológica, levando-o ao “palácio” do plano de ideais nobres, como de fato acontece em algumas versões da história, que apresentam Cinderela levando consigo as irmãs colaças e a madrasta para o castelo e seu fausto, após o perdão que lhes concedeu, na verdade o “auto-perdão” que a consciência amadurecida se oferta.

Voltando à seqüência do conto, eis que, então, o “príncipe” que é a manifestação possível, atualmente, do seu Eu Superior, o “rei”, o anjo em gérmen que habita a criatura, toma a iniciativa de procurar uma forma de se “casar”, de unir-se, à “Cinderela”, ao ego, que é, como dissemos, o meio de ele se concretizar no mundo físico. E, para tanto, faz uso de um “sapatinho de cristal”, a sinceridade “basal” de “Cinderela”, para que, com essa autenticidade de espírito, possa ser canalizado para o mundo das formas. Para isso, envia “emissários”, os bons pensamentos e sentimentos da consciência, para vasculhar os “pés” (a base verdadeira do ego), para descobrir “onde” está a sinceridade e pureza de intenções (eis porque o sapatinho é translúcido como um cristal). E, com isso, ao ser descoberta Cinderela, apesar dos farrapos com que está “trajada” (a circunstância de vida do ego, quando descobre sua verdadeira vocação), manda trazê-la ao “palácio real” (o campo de suas realizações nobres), para viverem “felizes para sempre”, ou seja: para dar-se início à sua epopéia de espírito eterno, que conseguiu realizar a missão prodigiosa de unir o ego ao Centro Superior de consciência, chamado, em psicologia profunda, de Self, isto é: o “príncipe”, que, um dia, se converterá no “rei”, ou, em outras palavras: o ser nobre que se pode ser agora, para que, um dia, possa se converter no anjo que todos seremos, um dia, pelo “tempo”, pelo desdobramento do processo evolutivo.

Linda e profunda, rica e sábia, a história de Cinderela, não? Suspeitava você haver nela tantas sugestões sábias para nosso crescimento? Não menosprezemos o encantamento das crianças com as pequenas coisas, como as doces histórias dos contos de fada. Por detrás do sorriso das crianças, como disse Jesus, está o Reino dos Céus (*2).

(Texto recebido em 5 de dezembro de 2004.)


(*1) Tese publicada pela feminista norte-americanda Collette Dowlling, no início da década de 1980.

(*2) Brilhante. Que sumidade do mundo da psicologia, na Terra, seria capaz de dar uma versão tão profunda, e ao mesmo tempo tão prática e didática de uma simples história infantil? Eugênia, realmente, é uma grande mestra, não concorda, prezado leitor? Que Deus a abençoe por nos ensinar tanto e nos ajudar tanto a nos compreender em profundidade e nos encontrar, para a realização de todos os nossos potenciais.

(Notas do Médium)