por Benjamin Teixeira.

Tendo recebido, pela internet, uma pergunta que apresenta cunho de interesse coletivo, pedi aos orientadores espirituais autorização a publicá-la, com respectiva resposta que lhe apus, obtendo-lhes a anuência para tanto. Nesta publicação, há acréscimos à carta eletrônica original que enviei ao remetente, mas o espírito do texto, essencialmente, é o mesmo.



(Pergunta:)

“Não farás para ti imagem de escultura representando o que quer que seja, do que está em cima, no céu, ou embaixo, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas para render-lhes culto, porque eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus zeloso, que castigo a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam, mas uso de misericórdia até a milésima geração, com aqueles que me amam e me guardam os mandamentos.” (Deuteronômio, 5, 8-10)

Diante desta passagem bíblica, pergunto: Por que as pessoas – digo católicas e de outras religiões – se curvam para imagens, se a própria Bíblia proíbe isso?

(Resposta:)

Respeito à Bíblia.

A Bíblia, amigo, como livro sagrado, deve ser lida com o respeito e profundidade que merece. Não lemos uma obra de ciência, nem mesmo de literatura, pela interpretação literal. Quanto mais complexo e profundo um texto, mais ele é repleto de conteúdos a serem extraídos das entrelinhas, do subtexto, e, principalmente, do contexto histórico, social e cultural em que veio a lume. Por que incorreríamos em falha tão crassa como a de ler apenas o óbvio e literal, equívoco que se torna sacrílego, no caso da Bíblia, cujo texto muito sabiamente é compreendido, em nossa cultura ocidental, como a “Palavra de Deus”? Lendo-a assim, tornaremos a Voz do Alto contraditória e mesmo abominável. Dentro desta forma superficial e tosca de entender a redação arquimilenar, na passagem do Deuteronômio que foi exposta, Javeh se mostra vingativo, mesquinho e cruel, capaz de um ato hediondo como cobrar de filhos, netos, bisnetos (e além deles), atitudes indevidas perpetradas por um seu ancestral. Supor que uma fala desta seja exatamente o que o Ser Supremo do Universo tenha querido dizer é, no mínimo, um desacato à Figura que nos merece toda reverência.


Tradição oral – “telefone sem-fio” secular.

Consideremos, agora, que boa parte do Antigo Testamento foi transmitida oralmente, por centenas de anos, até ser registrada por escrito. Como se nota na brincadeira conhecida como “telefone sem-fio”, que, em poucos minutos, degenera horrendamente uma história, apenas porque esta passou por vários intermediários comunicantes, um efeito mastodôntico disto acontece, multiplicado várias vezes, se contamos não com minutos ou poucas pessoas, mas com séculos e milhares de indivíduos interpostos entre a fonte original do conto e os ouvintes presentes…

Inúmeras traições.

Agora, pense n’outro tópico fundamental a respeito do texto bíblico: ele foi traduzido e retraduzido uma miríade de vezes. Se, numa mesma língua, no correr dos anos, o significado dos vocábulos e expressões idiomáticas tende a sofrer substanciosas modificações, imagine-se o que não acontece com várias traduções sucessivas. Segundo filólogos, inexoravelmente, cada tradução constitui uma traição… neste caso, claramente dizendo, uma traição ao propósito original do autor bíblico, e, mais ainda, da Fonte Sublime de Inspiração que o conduziu.

Distorções, interpolações, cortes, pelos Concílios da Igreja Católica.

No correr de séculos, de acordo com os interesses e as conclusões eclesiásticas de famosos concílios, trechos inteiros da Bíblia foram banidos, sacrilegamente.

Além disto, estudiosos aventam que muitas passagens do atual texto bíblico tenham sido inclusas, no correr de sucessivas traduções, como comentários dos intérpretes aos escritos, que acabaram por passar como parte integrante do livro sagrado.

A própria definição do que deveria ser considerado Evangelho “oficial” (chamados canônicos) ou não (os apócrifos) aconteceu por arbítrio destes “bispos” dos primeiros tempos do Cristianismo. São Jerônimo, sozinho, recebeu a incumbência de decidir quais seriam os Evangelhos sinópticos (outra denominação para os canônicos).

O I Concílio de Nicéia, que ocorreu em 325 de nossa era, como exemplo máximo das adulterações levadas a efeito na obra bíblica, deliberou a extração blasfema de todas as passagens que evidenciassem mais claramente o princípio da reencarnação. O Imperador Constantino exigiu tal despautério da alta cúpula da Igreja daqueles dias, por influência de sua esposa, que não admitia pudesse retornar ao mundo físico, na condição de uma escrava.

Como ler, de modo literal, textos tão “mexidos” no correr de dois milênios? Só se almejássemos renunciar à razão e ao bom senso, ou estivéssemos movidos de outras intenções, inconfessáveis, de dobrar e manipular informações ao nosso gosto… conforme nossos interesses pessoais…

Modo mais certo de adulterar a Fala Divina.

Em outras palavras, ler “ao pé da letra” a Bíblia, como pretendem e de fato fazem alguns religiosos ortodoxos, é a forma mais segura e direta de se adulterar completamente a Palavra de Deus, corrompendo, por inteiro, o que Ele quis dizer. Lembremos, para elucidar este nosso esforço de buscar o sentido oculto da Escrita Divina, o pensamento de Paulo de Tarso, a personalidade mais relevante, após Jesus, para o Cristianismo, conforme opinião unânime de estudiosos bíblicos: “A letra mata, o espírito vivifica.”

O sentido subliminar da metáfora.

Voltando à passagem do Deuteronômio assinalada, trata-se de uma metáfora. A idolatria, neste caso, é simbólica. Pode-se guardar uma foto dos entes queridos na carteira e não se estar prestando culto a esta imagem, que constitui um mero instrumental de rememoração e mesmo de conexão com a pessoa amada, que sabemos não ser um pedaço de papel com a gravura fotográfica. Mas, talvez, na própria carteira, tenhamos um símbolo que, para muitos, representa, este sim, um verdadeiro culto à idolatria, uma tentação de que poucos se evadem: o dinheiro, bem como o status e o poder por ele favorecidos, que acabam tomando um espaço, no coração e na mente das pessoas, maior do que o dedicado a Deus… Esta é a idolatria a que a Bíblia se refere: colocarem-se outras preocupações acima da ausculta dos alvitres da própria consciência, do ideal, da vocação, do espírito de serviço. E, sem dúvida, é uma tentação muito difícil de ser vencida.

Voltando à exegese do texto que propôs, é bem evidente que se trata de um absurdo ingente que um Deus de misericórdia odiasse um indivíduo a ponto de se vingar dele em seus descendentes, até a terceira e quarta gerações; uma injustiça de proporções colossais. Tal fala pareceria diabólica, e não divina, se não se tratasse de uma alegoria. A terceira e quarta gerações do trecho citado são as próximas reencarnações, a que o próprio indivíduo que errou retornará, para expurgar os equívocos de passadas existências, sofrendo as conseqüências de seus atos, assumindo a responsabilidade pelo mal que impingiu a outras pessoas, ressarcindo-se por isto, com um bem a fazer a estes mesmos indivíduos, na medida correspondente à maldade cometida no passado.

Quem não lê metáforas.

Além de um desrespeito à Bíblia, dificuldade em ler metáforas é, por sinal, uma característica cognitiva que revela profunda limitação, relacionada a crianças, ou denuncia um distúrbio típico de psicóticos.

Confidência.

No meu caso, a propósito, aceitei Jesus, graças ao Espiritismo e ao entendimento de psicologia profunda, que nos oferecem magníficas introvisões sobre as entrelinhas e complexos e múltiplos significados do texto bíblico. Antes, o Cristo me soava incongruente e injusto. Com o Espiritismo, passei a compreende-l’O melhor e, dentro de minhas enormes dificuldades, tentar ser Seu discípulo, fazendo um esforço por Lhe aplicar a mensagem intemporal.

Os verdadeiros discípulos, por uma ótica literal do texto bíblico.

O Espiritismo nos propõe fazer tudo que Jesus fazia: curar os doentes por imposição de mãos (passe); falar com os espíritos (com os “daimons”, que, em grego, significava “espíritos”), expulsando-os dos sofredores (reuniões mediúnicas de desobsessão); receber o Espírito Santo (a Comunidade dos Espíritos Santos); pregar a verdade em toda parte; viver o amor, a prática da caridade, do perdão irrestrito; exercitar o uso da razão, focar o pragmático e o resultado objetivo de qualquer situação, escolha ou evento. Disse-nos o Cristo, também, que, se não realizássemos as coisas que Ele fazia, não seríamos seus verdadeiros discípulos. Se seguirmos, literalmente, esta passagem, entenderemos, então, que os espíritas seriam os verdadeiros discípulos do Cristo, e não os componentes de outras religiões, que não são dados a práticas mediúnicas. Mas é claro que não concordamos com isto, porque, justamente, propomos que não devemos seguir esta linha de interpretação tosca e pobre.

Jesus acusado de endemoniado.

O próprio Cristo não escapou da sanha preconceituosa de seu tempo e, principalmente, da hipocrisia e ortodoxia religiosas de todas as épocas. Tal qual o Espiritismo, o Mestre foi acusado de ser instrumento das Forças do Mal e de operar Seus milagres em nome do “Príncipe dos Demônios” (Marcos, 3, 22). Mas a resposta de Jesus, no versículo seguinte, é suficiente para dirimir qualquer dúvida sobre seu trabalho: “Como pode Satanás obrar contra Satanás?” Ensina-nos, ainda, nosso Guia Maior: “Pelos seus frutos os conhecereis” (os falsos profetas). “Colhem-se, porventura, uvas dos espinhos e figos dos abrolhos? (…) Uma árvore boa não pode dar maus frutos; nem uma árvore má, bons frutos” (Mateus, 7, 16-18). Como pode o Espiritismo ter origem maligna, concluímos, se propicia a expulsão do mal na vida das pessoas, desde distúrbios mentais insidiosos à desesperança de viver, do cinismo materialista e ateu à compulsão dos vícios devastadores, ensinando, com poderosa ênfase e fundamentada argumentação, que todos orem e busquem amar e servir ao próximo?

(Texto redigido em 4 de abril de 2007. Revisão de Delano Mothé.)