Crônicas de Gustavo Henrique

Benjamin Teixeira
pelo espírito
Gustavo Henrique.

Há muitos anos atrás, viveu Sofie, grande bailarina, que quase enlouqueceu de tristeza, por não poder dançar, proibida por seu pai conservador, como o eram quase todos os pais e famílias da época.

Todos os dias acordava Sofie com os pés vibrantes, prenhes de pruridos insopitáveis por bailar, bailar…

Sofie era filha de tradicional família da elite rural francesa, e não poderia jamais se dedicar a tal mister, para sua cultura de classe subalterno e ignominioso. Mas Sofie era “filha da Arte”, impregnada de irrefreáveis impulsos para viver e potencializar o belo que, para ela, traduzia-se, essencialmente, em interpretar com o corpo as mais belas sinfonias já compostas.

Sofie fugiu de casa. Foi para Paris, na carona de carroças humildes, ou mesmo a pé. Quilômetro a quilômetro, venceu a distância que a separava da cidade de seus sonhos…

Foi aceita com dificuldade no “metié”, sofreu amarguras indescritíveis, comunicava-se com a mãe por meio de correspondência, destinada à casa de uma tia materna, mas, afora esses momentos sublimes do contato com a mãe querida à distância, só lágrimas encontrou por seu caminho, até mesmo no instante de dançar, já que tinha que se submeter a situações vexatórias, impostas por mestres e patrocinadores. Mas Sofie era determinada, e o tempo lhe propiciou a concretização de seu sonho. E, certo dia estava ela, de pé, em pleno palco, aplaudida por multidão culta e nobre no “Opera de Paris”. A orquestra se lhe afigurava a uma extensão musical do Céu, e a ribalta, para ela, representava-lhe o paraíso no mundo de degredo, em que poderia viver, respirar e sonhar…

Terminada aquela noite única que passara tão fugazmente como parecia eterna, Sofie voltou ao quartinho humilde de pensão onde morava. Poderia morrer em paz – pensava em solilóquio – após aqueles rápidos momentos de brilho invulgar, de felicidade paradisíaca, de transporte ao Céu. Fechou a portinha singela e frágil, que mal lhe guardava a incolumidade física e notou, sobressaltada, a presença de um estranho no meio do recinto. Voltando-se de inopino, sorriu extasiada… não era um estranho, mas seu pai, de pé, no meio da sala. E Sofie, então, em meio a um sorriso luminoso, profundamente emocionada, ouviu-se dizer, encantada: “Papai, que bom vê-lo, nesse dia tão especial!!!” Dito isso, porém, Sofie sentiu um estalido no ar, e uma pancada violenta no peito, e, trespassada por dor inominável, tocando o tórax d’onde já borbulhavam flores vermelhas de líquido quente, levantou os olhos em lágrimas… e disse ao visitante, ainda sorrindo, com o olhar mais mítico e profético que seu genitor jamais vira em toda vida:

“ – Obrigada, papai, não sabia que seria o Senhor a me libertar desse vale de lágrimas… Vou para onde poderei dançar, em paz e sem condições… para sempre…” E caiu em meio a uma poça de sangue, com um sorriso angelical e místico congelado eternamente no rosto.

Recomposto do momento de fúria e desatino, o pai de Sofie caiu sobre seu cadáver, em prantos, tentando reverter o irreversível, gritando selvaticamente por seu nome e pedindo-lhe desculpas a plenos pulmões, dali nunca mais recobrando o juízo e paz, até o dia de sua morte, arrancado do mundo, em trevas e dor incalculáveis, para chorar além-túmulo, até os dias que passam, por aquela noite fatídica e infeliz, em que ceifou da Terra um anjo, mas também responsável por libertá-lo do planeta de degredo e infelicidade, onde ainda não há espaço para as almas puras do Plano Infinito…

A partir daquele dia inesquecível, Sofie foi vista, por gente mais sensível, dançando, extática, nos palcos do Opera. Mais que isso, era ela quem dava luminosidade e encanto às apresentações de ballet da casa famigerada de Arte, assim como era ela quem inspirava os coreógrafos mais apaixonados e idealistas.

Sofie, mártir da Arte e da Beleza, que viera plantar a semente do enlevo, na terra áspera dos corações humanos, foi para de onde viera… Sofie, voltou a dançar no Céu, enquanto a Terra ainda vive na contra-dança de renegar a nobreza e a excelsitude das artes, no envilecimento de paixões subalternas.

(Texto recebido em 10 de agosto de 2002.)