Benjamin Teixeira
pelo espírito Eugênia.
Este texto, relativamente longo para os padrões desta página, é componente do Tomo 2 do livro “Maria Cristo”, que será publicado no próximo dia 24 de julho, às 19 h 30 min, no Teatro Tobias Barreto, Aracaju. É uma “canja” que damos, para que todos fiquem “com água na boca” para o restante do volume. Pela extensão relativa do capítulo aqui publicado, figurará como “mensagem do dia”, neste site, até as 24 h desta terça-feira, 12 de julho. (Nota do Médium)
– Noraci, é a jovem de que lhe falei – disse Otávio, introduzindo uma mulher que deveria estar próxima de 30 anos, sem os ter completado.
– Oh, que bom! Seja bem-vinda!
A moça, então, sentou-se à cadeira que se lhe indicava, na sala para “entrevistas”, do Centro dirigido por Otávio, em que Noraci começara recentemente a trabalhar, na condição de voluntária para aconselhamento geral e espiritual.
– Foi enviada por Eduarda, do Lar de Todos, você a conhece?
– Como não? A grande dama da caridade em nossa cidade… Vindo indicada por ela, seja bem-vinda, mais ainda, minha jovem.
Otávio fechou a porta empós sua passagem, e logo Noraci estava a sós com…
– Lígia.
– Prazer Lígia. Em que posso lhe ser útil?
– É… – falou escrupulosa, por ter que se abrir ante uma estranha – eu ando com problemas no meu casamento.
– É casada há muito tempo?
– 10 anos.
– Nossa! Já tem todo esse tempo de casada? Quantos anos você tem, minha filha, desculpe-me por lhe perguntar, mas é porque a vejo tão menina!…
– 28.
– De fato, muito jovem… E casou-se uma criança…
Lígia abaixou os olhos, como que sendo assolada por visões interiores que lhe comprimiam o peito.
– Não sei mais se amo meu marido. Vivemos como “gato e cachorro”, dentro de casa. E estamos envenenando, a meu ver, a mente frágil de nosso menino de 9 anos, cuja gravidez nos forçou ao matrimônio, por exigência de meus pais.
– Grande erro. Terminar de destruir a vida de uma filha, por um equívoco da juventude.
– Acontece que somos espíritas, e entendemos que esta gravidez indicou um compromisso entre mim e meu esposo, e que devemos ter planejado isto antes de reencarnar.
– Ou não, e apenas estão se violentando e prejudicando a criança.
– Não entendi.
– Há gravidezes acidentais, que não foram programadas antes do nascimento.
– Mas ainda assim, não implica um compromisso novo, que temos que levar até o fim, para não nos comprometermos mais ainda?
– Uma coisa é arcarmos com as conseqüências de nossos atos, bons ou ruins; por exemplo: você cria seu filho, assumiu a responsabilidade por ele. Outra é você persistir num caminho que sabe estar errado, o que indica um total despautério, uma renúncia ao bom senso e à lógica. E, se faz isto por sua criança, ironicamente – o que prova ser este um caminho errado – será ele o maior prejudicado, no centro de uma relação pouco saudável.
Antes tivesse nele dois pais civilizados, convivendo à distância, que dois inimigos, no seio do que deveria ser um lar.
– Mas eu não posso me separar. A Doutrina nos ensina que o divórcio indica uma fuga de um débito de outras existências, que vai ficar pendente para a próxima reencarnação, com agravantes. E se já está difícil agora com ele, nem consigo imaginar esta situação piorada.
– Você acabou de ser uma digna porta-voz de alguns vícios conceituais de nosso ambiente espírita de hoje. Conceitos totalmente equivocados, que, repetidos ao infinito, começam a parecer sensatos. Um deles: de que o divórcio é sempre errado. Sendo assim, por que Allan Kardec dedicou um artigo apenas ao tópico, defendendo, no mais religioso dos
livros de seu pentateuco, o Evangelho Segundo Espiritismo, publicado em 1864? E o que dizer da fala direta dos orientadores do ínclito codificador, condenando abertamente este conceito de indissolubilidade do matrimônico, em “O Livro dos Espíritos”, de 1857? (*1) Se Kardec teve este vanguardismo, em pleno século XIX, não se justifica que nós, um século e meio depois, ainda estejamos presos a preconceitos tão tacanhos. O próprio Kardec, na obra que aludo, cita Jesus, que, a respeito da autorização de Moisés à separação de casais, assevera que o grande autor de Deuteronômio teria feito isto, pela “dureza” de nossos corações (*2). Ou seja, o próprio Cristo endossou a necessidade, em dadas circunstâncias, de haver uma ruptura dos laços conjugais, inclusive para que crimes hediondos não venham a ser perpetrados por gente ensandecida por uma violência contínua à própria natureza. Algumas pessoas, todavia, impregnadas de mitos religiosos e de uma valorização excessiva às convenções sociais, acabaram por repetir o dogma secular da “indissolubilidade do casamento”. Vivemos numa era de consciência e não de dogmas ou de “doutrinas”, como falou você. Não vejo o espiritismo como uma doutrina. Você pode chamar de filosofia de vida, ciência religiosa ou espiritual, mas jamais de “doutrina”, porque não há intenção de se impor um código de crença. A palavra doutrina, por sinal, tinha uma acepção inteiramente diferente ao tempo de Kardec; uma conotação de “conjunto de idéias”, “sistema de pensamento”, e repete-se-a hoje, sem a devida atualização, já que os idiomas, como estruturas culturais “vivas”, merecem uma abordagem lúcida, para que graves equívocos de comunicação não seja cometidos. Vícios vocabulares, que, lamentavelmente, têm correspondência em vícios do pensamento e do comportamento. Há o hábito, como sei que sabe, inclusive, de se chamar as palestras ou exposições espíritas de “doutrinárias”, e a função dos orientadores encarnados, nas reuniões mediúnicas de desobsessão, é também denominada de “doutrinação”, em vez de “esclarecimento”, como proposto pelo espírito André Luiz, através da mediunidade ímpar de Chico Xavier.
– Mas os próprios livros espíritas e as obras mediúnicas parecem chancelar este meu ponto de vista, de que o divórcio é uma fuga moral a compromissos assumidos.
– Há casos e casos, minha filha. Indubitavelmente, jamais uma pessoa sensata compactuaria com o comportamento estróina, leviano e irresponsável de casais que se unem e se separam, como quem experimenta roupa nova. Os próprios especialistas aludem a este fenômeno moderno da sociologia como “monogamias seriais”, em que, antes de se complete o período de efervescência e declínio de uma paixão (que não ultrapassa 3 anos e meio) já se passou ao novo relacionamento. Pessoas assim vivem embriagadas de alegria (por efeito dos hormônios e toda a bio-química nervosa do enamorar-se), em seus relacionamentos festivos, mas não têm profundidade alguma em seus sentimentos, perdendo o melhor da vida e dos relacionamentos duradouros, como a estabilidade, a ternura, o compromisso familiar, a paz, a satisfação, a segurança e o equilíbrio de se estar com quem se partilha uma longa história de vida. Entretanto, não sei se é o seu caso, principalmente em se tratando de um relacionamento que praticamente foi forçado.
– Não praticamente: foi forçado.
– Disse o “praticamente” em respeito ao fato de você o ter escolhido, engravidando dele, ainda que “acidentalmente”.
– Oh, sim!… – riu a moça inteligente e instruída, satisfeitíssima com o nível da conversa.
– No que diz respeito ainda ao tema dos textos espíritas, incluindo os mediúnicos, devemos ter o máximo cuidado, porque não só no que tange a autores encarnados, como a médiuns canalizando inteligências da outra dimensão de vida, os preconceitos e o tom mental dos intermediários no plano físico sempre se manifestam e se interpenetram, de certa maneira, inclinando ou distorcendo, mais ou menos, o que é escrito em nome das inteligências comunicantes. Claro que isto é, normalmente, um fenômeno inconsciente, porque aqueles que realmente estão convencidos do espiritismo, jamais fraudariam conscientemente. Ainda há a questão de os próprios orientadores espirituais respeitarem e contornarem, quanto possível, os valores, convicções e preconceitos dos médiuns, para que eles continuem ouvindo-os, como afirmaram fazê-lo, em “O Livro dos Médiuns”. Por outro lado, os próprios espíritos superiores revelaram, desde o século XIX, que as revelações seriam gradativas ao avanço da ciência e da cultura humanas, e que deveríamos acompanhá-los. Muito importante considerar isto: que, como todo líder espiritual ou religioso de outras denominações, todo médium (como, de ordinário, qualquer ser humano) comete erros, impregnando as comunicações, com sua cor conceitual, (incluindo preconceitos e mundividências), inexorável, embora inconscientemente (uma distorção consciente constituiria fraude) seja quem for. E, quanto aos os espíritos superiores fazem revelações gradativas, conforme a capacidade de absorção das massas a quem dirigem as novas informações morais, poderíamos tranqüilamente assegurar-lhe que um diálogo como este, que travamos agora, minha filha, seria impossível de acontecer há 50 anos, porque as pessoas, simplesmente, não estavam preparadas a ouvir isto.
– Vejo isto também em relação à homossexualidade.
– Exatamente. Fala-se que a homossexualidade é vício, depravação, débito de outras vidas. Tudo isto pode ser verdade, considerando-se caso a caso. Mas considerar-se a homossexualidade como sendo um sinal de disfunção do espírito ou da mente encarnados, no meio espírita, é lamentável e, basicamente, atitude não-espírita; porque, como Kardec estipulou claramente que quando a ciência contradissesse algum ponto da “doutrina”, deveríamos esquecer a “doutrina” neste ponto e seguir a ciência, e em nos reportando à Psiquiatria e, hoje, podemos dizer todas as escolas de psicologia, que apontam a homossexualidade como um evento natural, e não-patológico da psique humana, d’onde estariam tirando estes autores seus preconceitos sobre o tema?
– Sem dúvida. Tenho vários amigos gays. São meus melhores amigos. Parece que a vida dura que levam, numa sociedade que não os aceita, torna-os mais maduros que as demais pessoas.
– Ou os enlouquece. Já pensou o que seria de nós, se desde criança nunca víssemos um modelo de relacionamento hetero, nem na televisão, nem no cinema, nem na vida prática, e só ouvíssemos ataques à nossa moral, à nossa estima, a começar dos próprios pregadores religiosos, a afirmarem categoricamente sermos uma aberração da natureza e abomináveis diante de Deus? Além do quê, sem autorização praticamente para viverem sua sexualidade, a não ser em guetos, que hoje são considerados uma concessão moderna ao bizarro (porque se não fosse visto como bizarro, não seriam necessários os redutos), sofrem ataques e pressões em casa, no ambiente social, na cultura, na religião. Até por Deus, como disse, os gays são levados a se sentir detestados e abominados. É de pasmar que muitos deles se mantenham pessoas não só mentalmente sãs, mas excepcionalmente bondosas e maduras, o que indica que grandes espíritos pedem para reencarnar nesta condição ainda delicadíssima, para os padrões sócio-culturais da atualidade.
A esta altura, a jovem mostrou um fio de lágrima furtivo. Noraci suspendeu o discurso, por um momento.
– Desculpe-me, para a senhora me sinto à vontade em dizer: tenho um irmão gay, e sempre pensei da forma como a senhora está falando, mas nunca vi tão bem colocado… ele é uma pessoa maravilhosa, uma inteligência rutilante e um coração generosíssimo.
– Os homossexuais, minha fila, representam 10% das populações, segundo as estimativas mais conseravadoras. Ou seja: estão por toda parte. E toda vez que nos colocamos contra eles, estamos pisando, muitas vezes, nossos mais amados entes queridos, a quem deveríamos estender a mão do apoio afetivo e não o ataque nefando, ratificado intramuros do lar, que acontece contra eles, cruelmente, no mundo externo.
Lígia balançou a cabeça afirmativamente.
– Mas voltemos ao nosso tema. Nenhuma pessoa sensata, madura, lúcida ou esclarecida hoje vai se posicionar contra o divórcio, como não o fará em relação à homossexualidade.
Alguém tem que ser muito limitado, ignorante e/ou mal-intencionado, para se posicionar radicalmente contra o divórcio. São normalmente pessoas de mente estreita e coração duro, sem experiência e perspicácia suficientes para apreender a complexidade dos relacionamentos e da existência humana, como um todo. Há pessoas, por exemplo, que são horrivelmente contra o divórcio, por terem relacionamentos felizes, e temerem perdê-los, ou por viverem conflitos suportáveis e administráveis em casa. Outros, querem ficar à vontade para praticar sua crueldade sistemática e sua indiferença, sem perigo de serem “trocados”, como mereceriam, por “coissa melhor”. Muita gente bem intencionada, mas superficial em sua avaliação para tal conclusão sobre a indissolubilidade do casamento, não conhece, porém, os dramas medonhos vividos pelos vizinhos e se julgam abalizados a opinar. O tempo, todavia, não tardará, em dar-lhes respostas duras, se duros se mantiverem. Como ensinou Jesus: “Com a medida com que julgardes, sereis julgados”. Alguém que condena aberta gays, por exemplo, de tanto infernizar entes queridos com seus discursos letais à auto-estima de quem for homossexual, pode descobrir o cadáver de um filho amado, que se suicida sob seus olhos, e um bilhete declarando sua homossexualidade ao lado. E quem se posiciona ferrenhamente contra a separação, pode flagrar o cônjuge amado numa relação extra-conjugal com o melhor amigo, e talvez se dar conta de que todo conceito deve ser relativizado, e de que, inclusive, o cônjuge provavelmente estivesse muito mais feliz na outra situação do que com ele. Há que considerar, ademais, que a longevidade das pessoas é mais extensa hoje, pelos ganhos do sanitarismo, da farmacologia e da melhoria geral de qualidade de vida, a começar pela alimentação farta. Antigamente, ninguém tinha tempo para entediar-se com o parceiro, porque estava lutando para sobreviver durante o dia, e esperando a morte próxima, quando seria o tempo de ter havido tantas transformações a ponto de cogitar-se de uma separação. O mesmo se dá hoje com relação à vida profissional. Muita gente hoje, à altura da meia-idade, tem optado por novas carreiras, após encerrar uma primeira, da mocidade. Cada vez mais as pessoas se aposentam no apogeu de seu vigor físico e intelectual. Duas, três carreiras são cogitadas como possíveis, por sociólogos e psicólogos do trabalho. Dois, três casamentos, por que não? – também podem ser viáveis. Não que seja desejável mudar de carreira, nem acabar e começar outro matrimônio. Ninguém deseja crises de ruptura, de identidade, de busca de novas fronteiras, novos horizontes. Estas coisas simplesmente acontecem: são eventos e não escolhas. Gente de mente primária deseja e acredita ardentemente no império da vontade pessoal. A vida, no entanto, mais cedo ou mais tarde, mostra a todos, que, amiúde, temos que ser humildes para reconhecer que, no máximo, nosso livre-arbítrio pessoal e o império da razão e da vontade restringem-se a nos ajudar a gerir com um pouco menos de caos, as tempestades transformacionais a que a vida nos compele. E abraçar-se a um ciclo morto é muito pior, traz conseqüências muito mais sérias, para todos os envolvidos, do que, corajosamente, abrir-se a uma vida nova, uma fase nova de aprendizado e crescimento pessoal. Até mesmo em pensando nas crianças, melhor que vejam os pais como amigos-civilizados, do que como inimigos entrincheirados nas fronteiras do lar, fazendo-os odiarem a instituição sagrada do matrimônio e da família, além de carrearem, consigo, vida afora, seqüelas emocionais e traumas inextricáveis e insolúveis (que projetarão em seus futuros relacionamentos), sem a ajuda da encarnações futuras. Antes, precisávamos desencarnar, para reencarnar de novo, em nova circunstância. Hoje, podemos fazer isto, sem precisar de um novo corpo, o que é bom: evoluímos mais em menos tempo. E quem disse que estes outros casamentos não foram, em certa medida, considerados como programáticas eventuais na própria planilha cármica de planejamentos para uma determinada existência física? Se mudamos de cônjuge, de uma existência para outra, por que não poderíamos fazê-lo, no período de uma memsma reencarnação? Muita gente se mantém casada não porque seja feliz ou acredite na instituição do matrimônio, mas por conveniência, porque haverá crise financeira, porque alguém lhes paga as contas, porque seu grupo social não as verá com bons olhos, entre outras hipocrisias e intenções mesquinhas inconfessáveis. Isto seria decente? E esta conjuntura, de casamentos-fachada e da conveniência aplaudida é mais comum do que se imagina. Por outro lado, vivemos uma era de consciência, mais que de obediência. As pessoas não se sentem mais – o que é muito bom e lúcido, nobre, ético e espiritual (por conseqüência) – obrigadas a estarem umas com as outras. Ficam enquanto desejam estar juntas, e não porque estejam amarradas umas a outras. No passado, certos “sacramentos” e costumes não eram questionados, e, por isto, as pessoas viviam verdadeiros infernos domésticos, para preservar as aparências e a subserviência às regras e preconceitos sociais. Havia medo e não respeito no recesso do lar. Por isso, hoje, mais honestas consigo mesmas e transparentes em seus relacionamentos, as pessoas avançam para outros relacionamentos, que condigam com seu novo nível de consciência e necessidades espirituais e psicológicas. As pessoas se desenvolvem de forma diferente e em ritmos diferentes, e ninguém é obrigado a continuar ao lado de outrem, quando se sente ao lado de um estranho. Saber liberar e passar é uma prova suprema de desapego. Fala-se em renúncia o interesse pessoal, de transcender os limites pessoais para um novo nível de consciência. E a atitude corajosa de se divorciar, com todas as implicações, tanto libertadoras, quanto devastadoras, não implica um ato de bravura espiritual, de desapego em relação ao outro, da segurança e conveniência de uma relação, da aprovação social por se manter um relacionamento estável, do medo da solidão, etc., etc.? Querer cristalizar o passado só nos leva a mumificar a própria alma e perder o contato com os próprios sentimentos, bem como induzir o mesmo no parceiro e em todos os entes que mais amamos, como nossos filhos, ensinando-os com o método de ensino mais persuasivo de todos: o exemplo, a serem hipócritas, incoerentes com os próprios sentimentos, e, principalmente, serem infelizes! Tudo isto em homenagem a uma deusa pagã, tirânica e perversa, devoradora dos próprios filhos, que chamamos de “sociedade”. Queremos isto para os nossos filhos? O resultado não é só nossa infelicidade, mas de todos, inclusive dos filhos, que acompanham este drama e são por ele influenciados e marcados, mais do que se pensa. A maior lição de felicidade que se pode dar aos filhos é a própria felicidade. Misericórdia quero, disse Jesus, citando o profeta Oséias, e não sacrifício (*3). Só para concluir, podemos lembrar da adúltera da passagem bíblica, aquela que seria apedrejada e contra que Jesus se interpôs com a célebre frase: “Quem estiver sem pecado, atire a primeira pedra.” (*4) Diante desta postura de Jesus, por séculos, supuseram que aquela atitude do Mestre era um atestado máximo de sua dignidade e grandeza morais. “Olha só, como Jesus era divino!: perdoava e defendia até mesmo as pecadoras mais impenitentes!” Ninguém cogitou, até hoje, porém, de que o Mestre a defendera porque ela estava à frente e não atrás do padrão médio de evolução moral de seu tempo, a ponto de merecer que o próprio Cristo, em pessoa, viesse advogar sua causa. E que o: “Vá e não peques mais”, queria dizer: “Tenha juízo e não confronte tão abertamente o seu tempo.”, já que pecar, na origem etimológica do vocábulo, significa: “errar o alvo”. Como se sabe, a carta de desquite só podia ser dada por homens a mulheres e não vice-versa. As mulheres eram, desde cedo, prometidas a seus esposos, sem nenhum espaço à tergiversação, na escolha levada a efeito pelos pais dos nubentes. Uma mulher que hoje se contrapusesse a tal imposição tirânica, e se negasse a estar na intimidade com o homem que não foi de sua escolha, para estar com aquele eleito por ela mesma e seu coração, seria aplaudida atualmente; mas, naqueles dias, era apedrejada. De igual maneira, ainda hoje, muita gente que é apupada pela multidão, em verdade, está à frente do seu tempo, muita acima dos valores vigentes para a maioria. Claro que há os degenerados e os criminosos. Mas os marginais da borda de cima da linha da normalidade costumam ser tratados da mesma forma que os marginais da borda de baixo. Destarte, santos e criminosos, gênios e idiotas são nivelados e do mesmo modo tratados.
Noraci tinha todos os chacras superiores (do cardíaco para cima) irradiando forte luz violeta (o turqueza transmudou-se para este outro “matiz” do azul), para quem a via da perspectiva da espiritualidade, e a pequena linha de luz que a ligava “ao infinito” engrossara para formar enorme tubo iridescente sobre seu crânio, aljofrado e encoberto por colocarações variadas, como se um um arco-íris viesse fazer morada em torno de sua veneranda figura de mulher-sábia; Olhos flamejando ignota força e invulgar inteligência… indicando estar conduzida pela “voz” de grandes mestres da Espiritualidade Superior, que falavam muito acima do padrão médio de entendimento da Terra, para orientar os espíritos sedentos de Luz Espiritual, enxertando nos espíritos preparados para tanto, a semedura de novos paradigmas e cosmovisões, mais coerentes com a verdade e o bem, o amor e a paz provenientes de Deus.
Lígia, tocada nas fibras mais íntimas, mas sem se dar conta do que acontecia naquele momento, de estar Noraci guiada por grandes gênios do plano superior, chorava, em bagas. Noraci, dando breve pausa, para esperar as novas insuflações psíquicas dos orientadores do Mundo Invisível, sobremaneira o venerável Temístocles, tornou, então:
– Quero encerrar minha fala para você, minha filha, lembrando-lhe que, seguindo estas novas idéias, não encontrará um paraíso descido à Terra, mas uma seara de trabalho árduo, mas que, como o terreno árido a amanhar pode florescer e frutificar, com trato devido, igualmente nossas existências podem aflorar e produzir para o bem, quando sabemos converter o deserto de nossas crises e dores pessoais em oásis de alegria e serviço ao próximo.
Lígia, a esta altura, profundamente comovida, adivinhando estar diante de presenças ilustres, “invisíveis”, correu na direção da grande dama reencarnada, ajoelhando-se aos seus pés e abraçando-lhe o ventre, como a uma figura de mãe-divina-majestosa, chorando copiosamente, confortada, aliviada, esclarecida e profundamente agradecida pela dádiva daquele momento especial, que lhe diluía o terrível pesadelo de culpa e conflito que a martirizava. Noraci, em seu casamento missionário com Rogério, após divórcios de ambos dos primeiros consórcios respectivos, estava, mais uma vez, dando vazas a seu serviço de luz e de paz, espalhando graças na aspereza de corações sofridos e sequiosos das bênçãos da sabedoria e do amor…
(*1) Respectivamente: item 5, capítulo XXII, de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”; e
questão 697, de “O Livro dos Espíritos”.
(*2) (Mateus, 19:3-9)
(*3)Mateus, 9:13; Oséias, 6:6.
(*4) João, 8:1-11.
(Notas do Médium)