Benjamin Teixeira pelo espírito Eugênia.
Katarina estava bastante entusiasmada com a possibilidade de participar de uma reunião mediúnica. Disseram-lhe que era de grave responsabilidade o mister, e ela não teve a menor dúvida quanto a isso. Antes da hora aprazada para o início dos trabalhos, estava já sentada, no recinto reservado adredemente para tanto. Esforçava-se para fazer uma prece, e de fato orava, apesar do tumulto dos pensamentos. Para ela, o torvelinho das idéias e a curiosidade aguçavam-lhe a fé, em vez de embaraçar a concentração e a paz.
Os participantes costumeiros da reunião se acomodaram a seus assentos, nos minutos que se seguiram. Às vinte horas, pontualmente, o dirigente da mesa tomou palavra, indicou aquele que faria a prece inicial, ao final da qual outro participante teve autorização para fazer leitura de O Evangelho Segundo o Espiritismo, e um outro, de trecho de O Livro dos Médiuns. Um rápido comentário explanatório sobre os temas aventados em ambos os tomos fundamentais da Doutrina Espírita, por parte do mesmo dirigente, e as luzes foram reduzidas à quase total penumbra.
Katarina sentiu um frêmito de excitação. Finalmente, após mais de cinco anos de espera, estudo e intenso desejo de participar de um momento como aquele, lá estava ela, aguardando a manifestação dos irmãos em humanidade albergados na dimensão extra-física de vida.
Do nosso lado, a movimentação era frenética. A sala estava isolada por campos de força, além de submetida à devida assepsia energética. Diversos especialistas traziam companheiros sofredores para serem tratados (pela ajuda psicoterápica ali improvisada ou mesmo pela simples interferência fluídica) e outros tantos, renitentes em fixações neuróticas e obsessões complicadas, de longo curso (a serem auxiliados de modo similar). Orientadores de nosso plano também se faziam presentes e um deles, Wilhelmo, faria uso da palavra, por via mediúnica, naquela noite, instruindo e consolando, em pinceladas ligeiras, o grupo dos que estagiavam na carne, bem como dos que se mantinham fora do corpo físico. O número de encarnados não passava de dez. Entretanto, entre os desenfaixados do corpo físico, o número era de quase cinqüenta. Uma enfermaria havia sido montada, no local, além de turmas de paramédicos, psicoterapeutas e religiosos. Cinco amigos estavam acomodados ao lado dos mais sensíveis entre os participantes encarnados, os médiuns. Eram técnicos de manipulação energética e mental, favorecendo o melhor padrão possível de equilíbrio e harmonia íntima dos companheiros em foco, para os intercursos mediúnicos. Cateteres começaram a ser plugados a quatro dos não-médiuns, extraindo-lhes forças psicofísicas, para socorro imediato a vários doentes catatônicos de nosso plano, carreados para lá em macas. Esses influxos de força biológica dos encarnados, tinham uma freqüência mais baixa que a nossa, o que facilitava a absorção por parte dos sofredores desencarnados, carentes, inclusive, de alguma expressão material, na ajuda energética que lhes era oferecida, pelos fortes condicionamentos biopsíquicos a que ainda se mantinham atrelados.
Apenas um dos presentes do plano físico, invigilante, não portava qualquer recurso aproveitável. Desajustado em seus sentimentos, era de estranhar sua presença naquele recinto. Acreditava e não acreditava em tudo que acontecia. Mais que a mera ausência de convicção – que não cabe desenvolver no intercâmbio com o Mundo Maior, e sim por meio de estudo acurado ( a parte prática deve ser o coroamento das pesquisas e reflexões científicas-filosóficas, e não o contrário, sob pena de se criarem mais dúvidas e mesmo aversão pelo tema, pelo despreparo para interpretar corretamente os eventos eventualmente observados em reuniões mediúnicas) – Hermano se confiava à mais baixa expressão vibratória. Comia muito, desbragava-se no uso de álcool semanalmente, praticava sexo de modo desmedido e ainda tinha o péssimo hábito de só ver o lado pior de todas as pessoas e acontecimentos, comentando-os, freqüentemente, espalhando o tóxico de seus solilóquios interiores entre os que lhe eram receptivos aos venenos sutis.
Normalmente aproveitamos tudo que podemos, conhecedores que já somos das grandes limitações dos irmãos encarnados, em processo de transição para a angelitude, mas muito próximos ainda da emersão de longo passado no primitivismo animal. Todavia, no caso de Hermano, não havia qualquer possibilidade de bloquear processos emocionais ou filtrar-lhes as emanações mentais – tudo que fluía de sua mente estava contaminado de conteúdos deletérios, fazendo mal a ele e a quem se permitisse mesmo chegar perto fisicamente de sua pessoa. Sua presença era acréscimo de trabalho para nossa equipe, e, mais que isso, um sério escolho para o desdobramento das atividades da noite, que exigia medidas dramáticas por parte de nosso plano. Mal havia chegado à sala, imediatamente começou a ser isolado energeticamente do restante do grupo. Obrigado a respirar o próprio hálito mental (nem ele mesmo o agüentava), sem diluí-lo entre as energias mais leves dos presentes, Hermano logo começou a passar mal. Quando as luzes foram apagadas, já tinha certeza de estar sob efeito mental de uma entidade perturbada do além. Mas não só: mil especulações mórbidas lhe passaram pela cabeça, além da primeira, que logo se dissipou. Ah, D. Maria, essa falsa santa, sentada do meu lado… deve ser ela. Esses modos recatados – sua mente deve estar congestionada de podridões… E o Luís, aquele pedante, metido a orientador!… Tanta arrogância e autoritarismo… e ele está a menos de dois metros de mim… mais um motivo para eu estar tão mal… E Renan? e Letícia?…Ah… antro de obsessores encarnados… E esses monstros doentes se dizem espíritas!… E assim seguia Hermano, no famigerado processo de projeção psicológica, atormentando-se ainda mais em sua flama de ódio e asco por todos, não percebendo que apenas odiava a si mesmo, refletido na imagem dos presentes. Esquecendo-se de olhar para si e buscando culpados fora para seus problemas, não notava que esse era o mais claro indício de que, senão toda, mas a maior e a principal fonte de perturbação era ele mesmo. Havia sido convidado a estar ali mais por relação de amizade com o diretor da mesa e pela antiguidade no grupo que propriamente por altura moral para o sagrado ministério do intercâmbio interdimensional. Ah… as perigosas ilusões dos encarnados…
Wilhelmo se preparava, após alguns minutos de conexão psíquica com o médium de que era guia espiritual, para ensejar uma comunicação, a primeira da noite, orientando os presentes das duas dimensões. Provocava uma alteração nos padrões de ciclagem cerebral do medianeiro a expandir ligeiramente seu campo aúrico à altura da cabeça, para favorecer a acoplagem psíquica entre a sua e a mente do intermediário. Concluído o processo, tomou a palavra, na versão adaptada que o médium consciente fazia de seus pensamentos, conforme conceitos e modos próprios de ver e interpretar o mundo:
– Boa noite, prezados irmãos. Que Jesus, amigo incondicional de nossas almas, nos abençoe sempre. Que todos estejamos cada vez mais à altura do mandato que recebemos do Divino Amigo, transformando dor em labuta bendita na seara do bem. Que nossas lágrimas sejam compreendidas à conta de resgates cármicos de nossos antigos débitos com a Lei…
Um de nossos companheiros neófitos, no grupo dos desencarnados, sorria, surpreso, curioso com o fenômeno de distorção mediúnica a que já estávamos todos ali acostumados, mas que para ele constituía matéria nova. Conhecia não só o pensamento de Wilhelmo, em suas belíssimas prédicas de nosso plano, como também seu palavreado peculiar, e não só não notava nada de seu vocabulário pessoal, como quase não conseguia divisar-lhe as idéias e raciocínios, por detrás da filtragem do médium Carlos.
Observando-lhe as impressões de perplexidade com o fim de narrá-los aqui, poderia dizer que Fernando estranhava tudo. Dirigir-se a Jesus não era hábito de Wilhelmo. O grande orientador do além só se referia muito raramente ao Nazareno, preferindo fazer suas alusões ao Alto, diretamente na Pessoa de Deus. Quanto àquele apóstrofo: amigo incondicional de nossas almas constituía pura interpolação da mente mediúnica na mensagem, um maneirismo do meio espírita que se infiltrava na comunicação. Wilhelmo jamais falaria de Lei, mas sim de princípios universais, nem trataria de carma, muito menos de débitos, a serem resgatados, mas sim de equívocos do passado que deveriam ser substituídos e compensados por acertos no presente, no escopo de burilar nossas almas. Mas Fernando, que estava apenas surpreso tomou um susto quando, ao fim da ligeira digressão psicofônica, o médium disse, em alto e bom som:
… e assim, queridos irmãos, confrades e confreiras de ideal, despede-se, servidor humílimo,
Adolfo Bezerra de Menezes.
O queixo de Fernando estava caído e ele imediatamente voltou os olhos para mim, com um ar de quase indignação, interrogando-me mentalmente sobre o que se passava e se alguém não tomaria alguma providência para corrigir o equívoco injustificável.
Concentrando-me em seu chacra frontal, projetei-lhe, então, a seguinte resposta:
– Meu filho, tranqüilize-se. A questão da identidade dos espíritos comunicantes não tem importância. Para nós, que queremos fazer o bem, somente o bem interessa, e não a embalagem por meio de que chega a seus destinatários.
O companheiro, que você supõe mistificador, não é. Tão-somente não possui filtros mediúnicos suficientemente puros para detectar o equívoco de interpretação psíquica que faz dos eflúvios mentais do querido Wilhelmo, misturando em larga medida seus próprios conteúdos mentais com os do nosso amigo. Não tem intenção vaidosa de passar por médium do grande Bezerra de Menezes, muito embora, lamentavelmente, isso aconteça com alguns romeiros menos avisados da mediunidade. Apenas, por uma questão de condicionamento inconsciente, estabeleceu vínculo direto entre vibrações de ordem superior e a imagem veneranda do médico cearense desencarnado. Toda vez, assim, que se sente envolvido por expressões espirituais mais altas, logo as associa ao fundador da Federação Espírita Brasileira. De uma certa forma, esse vício mediúnico, se assim pudéssemos dizer, é disseminado por todo o movimento espírita internacional. Muito aclamado como divulgador e representante do Espiritismo entre os desencarnados, Bezerra se manifesta em milhares de centros espíritas pelo Brasil e pelo mundo, todos os dias. Obviamente que o estimado Mentor não tem tempo para estar se comunicando pessoalmente em todas essas instituições, nem tem evolução em nível divino, para se irradiar em miríades de localidades ao mesmo tempo, em tão extraordinário fenômeno de ubiqüidade. E ainda fora isso verdade, então, não haveria tanta facilidade de se entrar em sintonia com ele, como os médiuns dão a entender. Dr. Bezerra, no entanto, envia a algumas dessas instituições representantes seus para falarem em seu nome e, em outras, a Espiritualidade Superior, de uma forma geral, faz as vezes da substituição. Fazendo uma analogia livre, Bezerra de Menezes está, para o Movimento Espírita, como o preto velho está para correntes mediunísticas afro-brasileiras. Em todo lugar um tal de preto-velho sempre se manifesta e, muito embora sejam muitas vezes fenômenos mediúnicos genuínos, é óbvio que não se trata da mesma personalidade. O inconsciente dos médiuns está encharcado de idéias apriorísticas, de modelos pré-formados de manifestação, o que se estende até mesmo ao uso do Português, prenhe de corruptelas, no caso dos pretos velhos, e de um estilo forçadamente rococó, amiúde de péssima qualidade, no caso do atribuído a Bezerra. Se lhe estranha essa manifestação mediúnica, seria de lhe chocar muito mais se presenciasse amigos doutos de nosso plano visitarem terreiros de Candomblé ou mesmo centros de umbanda e lá falarem com o Português completamente incorreto e com conceitos totalmente anacrônicos, quando não mesmo patéticos no primarismo das superstições, por puro efeito da intervenção deturpadora da mente mediúnica. O médium não é simplesmente uma garganta, um braço ou um canal – como preferem chamar os anglo-americanos – dos espíritos que por eles se expressam. São tradutores, intérpretes de ondas mentais que lhe chegam, tornando-se, assim, porta-vozes e não reflexos mentais dos que nomeiam em suas comunicações psíquicas.
Eis aí a razão de se dever ter tanta cautela no trato com a mediunidade, médiuns e comunicações mediúnicas. Até em nome de Deus barbaridades foram ditas e perpetradas, como a História está prenhe de exemplos. Os preconceitos, a cosmovisão, valores e princípios do medianeiro transbordam por meio das comunicações, por mais que se tente evitar que tal aconteça, pelo simples fato de que, primeiro, mediunidade é fenômeno de intercessão conceptual e não de imposição mental ( ou seja: só é comunicado o que existe como matriz conceitual no médium, com o que o comunicante entra em ressonância) e, segundo, porque o direito e a liberdade de ser, sentir e agir dos médiuns é inviolável, não cabendo a nenhuma entidade que se diga do plano superior, violentar-lhe valores, paradigmas ou pressuposições de verdade em nome do bem e do amor. O respeito ao nível evolutivo de cada ser e suas estruturas personalíssimas de ser e sentir é lei indefectível de nosso plano.
Muitos estudiosos do fenômeno mediúnico, em notando algumas dessas verdades, mas de modo parcial, deduzem com isso que o transe é mero resultado de elaborações complexas do inconsciente dos próprios sensitivos, já a essa altura convertidos em meros paranormais, senão psicopatas, usando, assim, o fabuloso recurso do fenômeno mediúnico como um assolapador de suas convicções espirituais, imortalistas, em vez de como alavanca para sua fé.
É um alerta, outrossim, que se pode dar aos médiuns, para que nunca cessem de estudar, auto-analisar-se e sublimar-se, pois que, quanto mais virtuosos, instruídos e sábios se tornarem, melhores intérpretes poderão ser das grandes inteligências e corações do Mundo Invisível.
Fernando estava impressionadíssimo, mas isso lhe esclarecia algumas dúvidas e solucionava uma série de dilemas que vinha colecionando desde que, recém ingresso na observação da interação intermundos, viu que o processo não era tão simples como supunha quando encarnado, como no caso dos médiuns que vêem alguns espíritos mas não outros, que se sentem inspirados num instante, mas não em outros. Tudo era uma questão de faixa mental, de sintonia, de momento, e, mormente, de interpretação e decisão interiores, ainda que inconscientes, por parte dos receptores encarnados. Era assim que tanta gente enlouquecia por preferir concluir estar perdendo o senso a admitir estar sob influência de agentes desencarnados. Paradigmas, percepções – tudo se resumia isso; e, primacialmente: ótica individual, conforme o grau de expansão e complexificação evolutiva alcançada pela criatura.
A reunião se desdobrou por mais uma hora, com interessantíssimas lições a serem eduzidas. Mas isso é tema para nosso próximo capítulo.
(Texto recebido em 5 de janeiro de 2001.)