(Episódios com o professor Gerard – 5)
Consultamos nossa veneranda mestra Sophia sobre a possibilidade de sugerir ao caro professor Gerard que partilhasse com os(as) alunos(as) mais íntimos(as) um dos raros episódios em que se permitira fazer uso de sua ascendência moral. Tínhamos em mente uma ocasião em que ele “travou”, por assim dizer, os músculos de colegas que estavam para agredi-lo, quando ainda cursava o ensino médio.
– Sim. Nossos(as) educandos(as) encarnados(as) costumam imaginar, equivocadamente, que indivíduos dotados de poder espiritual (sempre concedido por razões evolutivas sérias) utilizam-se dessas faculdades a seu bel-prazer, a todo tempo, para atender a caprichos pessoais. Integrantes do Plano do Bem, entrementes, só recorrem a tais medidas, entrementes, quando há autorização superior que lhes chancele a iniciativa, por motivações graves e em circunstâncias especiais, como a que ora será reportada a todos(as).
Numa certa feita, colegas de Gerard (ainda com 16 anos) prepararam uma “armadilha de queda obrigatória” para outros companheiros. As meninas eram poupadas parcialmente; os rapazes, não. Todos levavam sopapos, ao passarem por um corredor polonês – duas filas de jovens que ladeavam um vão de escada, único percurso para o piso superior da edificação, onde se localizava a sala de aula daquela turma.
Se o passante estava acompanhado de uma moça, geralmente apenas os rapazes do seu lado desciam-lhe tapas. Não havendo moça alguma, as duas fileiras agiam, dando vazão à “brincadeira” de mau gosto de desferir golpes sobre cabeça, ombros e braços dos camaradas do mesmo gênero. Mas também eram vitimadas algumas amigas mais próximas, digamos: partícipes do grupo do “fundão da sala”.
Gerard percebeu, à distância, a “cilada”. Todos(as) que não compunham a formação agressora e os próprios que dela faziam parte eram estapeados(as), quase sem exceções.
Chegou a vez de nosso porta-voz (jovem no casulo de carne, não no espírito) passar pelo tal corredor. Uma colega vinha com ele, ouvindo-o discorrer sobre uma péssima obra de filosofia existencialista – de um malfadado autor francês. A fila da esquerda, justamente a mais numerosa, era a que seria movimentada ao “ataque” sobre Gerard, já que a moça seguia à sua direita e não suscitava muita “fúria” dos companheiros.
Os rapazes uivavam de prazer e soltavam gargalhadas, na aplicação das “vias de fato”. Tomado de indignação íntima contra a violência gratuita, que não lhe parecia apresentar nenhuma razão para riso, Gerard ocultava sua repugnância com um sorriso contínuo, enquanto, sem interrupções, prosseguia falando com a pobre amiga, que estava significativamente tensa.
Foi quando, internamente, pediu autorização à Faixa Sublime de Vida para se defender. Argumentou, rapidamente, no campo da conversação telepática, apresentando os motivos pelos quais solicitava permissão para lançar mão de suas funções paranormais: 1) a sirene para o reinício da aula, após intervalo de dez minutos, havia soado; 2) naquela instituição de ensino, era proibido ausentar-se da classe, sem motivo superior; 3) não havia, como apontado acima, outra rota para a sala; 4) os componentes do corredor polonês não faziam a menor menção de suspender o movimento de agressão; 5) ele e a interlocutora eram os últimos a subirem pela escada, de sorte que não podiam mais adiar uma providência; 6) a despeito de sua repulsa ao joguete mesquinho, não julgava correto prejudicar os colegas, registrando, perante a direção da escola, uma reclamação ostensiva sobre a traquinagem cruel.
Como, no domínio de consciência em que Gerard estagia, essa ordem de petições, avaliações e deferimentos eventuais ocorrem à velocidade do pensamento, sendo diligenciadas por Gênios Celestes que não precisam discutir sobre a complexidade dos assuntos em pauta para decidirem, num átimo, o mais apropriado espiritualmente a cada caso, a resposta chegou num “piscar de olhos”: ele poderia exercer sua “ascendência moral”, a fim de paralisar o sistema motor voluntário de cada um dos camaradas, à medida que lhes percebesse, de fato, a disposição a agredi-lo.
A fileira da esquerda era composta por cinco rapazes; a da direita, por mais quatro. Os que se encontravam nos degraus superiores da escada, de ambas as alas, bradaram para que o primeiro deles começasse a sessão de pancadaria. O destinatário da onda de gritos “motivadores” sacudiu o ombro, movendo um dos braços alguns centímetros, mas simplesmente não conseguiu sequer erguer as mãos, sem saber dizer a si mesmo, dada a empolgação de segundos antes, por que não atendia à euforia dos irmãos de “decadência juvenil”.
O mesmo se deu com o segundo, debaixo de protestos dos demais, dos dois lados do corredor, exceção feita ao que já havia “sofrido” a onda mental corretiva. E assim aconteceu ao terceiro e ao quarto, igualmente. O quinto e último deles parecia transtornado, berrando para que agissem, embora o restante dos parceiros, inclusive os da direita, quedassem-se silenciosos, “estranhamente” partilhando a sensação de “embaraço moral” dos outros, à proporção que nosso representante passava entre eles.
Acionando então, de modo especial, sua função psíquica, no sentido de coibir o intuito de “invasão de espaço”, por parte do colega estroina em histeria infantil (e perversa), Gerard disse, para dentro de si, em tom de repto do bem, enquanto continuava, por fora, o diálogo com a colega, como se nada estivesse sucedendo: “Vamos, amigo, tente!…”
Este último, mais exaltado, projetou o tronco para a frente, na direção de Gerard. No entanto, percebendo que estacou, premido por força “misteriosa”, à semelhança dos demais, esmaeceu o sorriso e parou de gritar.
A essa altura, todos estavam em silêncio. Ninguém mais se estapeou, na hora de “desfazer o corredor”, como lhes era habitual. Segundos depois, seguiam para a sala de aula, cabisbaixos, alguns murmurando monossílabos ininteligíveis, poucos passos atrás do professor em corpo tão jovem.
Gerard sentiu-se como um pai que houvesse repreendido filhos rebeldes, em momento apropriado. Intimamente, porém, condenava-se. Quando se via em situações que o compeliam a excepcionalmente apelar para aquela ordem de expediente “mental” (assim denominava para si, na época), contrariava-se profundamente. E o evento, como outros equivalentes, foi guardado em absoluto sigilo, por anos consecutivos.
Decorridas três décadas do incidente, a outra sala de aula, no século XXI, ouvia atenta a narrativa de nosso preclaro amigo encarnado. Quatro pessoas presentes, embora tentassem disfarçar sua incredulidade, acabaram, em tempo certo, sendo desmascaradas e desligadas da instituição por ele fundada, no domínio físico de existência. Conforme dissera nossa orientadora Sophia, certas personalidades realmente não admitem que um(a) portador(a) de funções de poder (invisíveis à percepção vulgar) possa renunciar a empregá-las constantemente, em próprio proveito.
Num canto da sala, outra aluna perturbada pensou pior: que o distinto canal das Vozes do Bem mobilizaria aquela aptidão extraordinária para “manipular” a mente da multidão, a todo instante.
Notando, em célere soslaio, a vibração da criatura que lhe era beneficiária dos esclarecimentos e orientações, por muitos anos, Gerard entristeceu-se. Como, conhecendo-o há tanto tempo, seria ela capaz de conceber tal coisa a seu respeito? Somente maus-caracteres, conjecturou, se permitiriam uso livre de seus atributos paranormais…
Eu mesmo o inspirava, pessoalmente, na descrição da antiga ocorrência ao grupo seleto de discípulos(as). Sophia, então, que supervisionava a iniciativa, imediatamente sussurrou-lhe à acústica mediúnica:
– Nossa irmã em humanidade, afeita à dissimulação e a jogos de sedução, ainda que com familiares íntimos(as), não compreende que você esteja num nível de sentimentos e motivações muito superior ao dela. Ignore e perdoe. Sigamos, sem detença, no cumprimento do dever de elucidar e libertar consciências.
Gerard fez uma prece ligeira à Face Maternal de Deus e voltou à palestra privada. Para quem o acompanhava no momento, pareceu apenas que, por uma fração de segundo, houvera abaixado os olhos e tomado fôlego para prosseguir com a preleção. De nossa perspectiva, uma profunda melancolia se estampara no olhar do professor devotado…
Gustavo Henrique (Espírito)
Benjamin Teixeira de Aguiar (médium)
Bethel, CT, região metropolitana de Nova York, EUA
9 de setembro de 2020