Benjamin Teixeira
pelo espírito Eugênia.
O que podemos saber sobre o tema “sombra psicológica”? Faço alusão especificamente ao trato e à elaboração da sombra. No meio espiritual, a tendência é reprimir-se a sombra, ao passo que no campo psicoterápico é tratá-la. Como devemos entender esse conflito?
Como um engano de percepção. Num nível profundo, as duas visões coincidem, apesar de, no meio psicoterapêutico atual, os aspectos morais dos pacientes não serem muito levados em conta. Todavia, se notarmos que o conhecimento gera amadurecimento, que, por sua vez, conduz à elevação dos sentimentos, entenderemos que até mesmo essa aparente falha das abordagens psicológicas dos dias que correm pode ser, na verdade, um mal-entendido dos que, em primeiro exame, encaram os diversos campos do estudo da mente humana, como a psiquiatria, a psicologia e mesmo a sociologia, como exageradamente complacentes e amorais. Em verdade, dá-se um trabalho de compreensão profunda do ser humano, fazendo alusão aqui às escolas de psicologia profunda, que, permitem o estudioso entender que onde há sabedoria, há luz espiritual.
No que concerne aos buscadores da luz espiritual, os que o fazem de forma lúcida, os que têm já um bom conhecimento da psique humana e da sua própria alma, entenderão que não podem simplesmente reprimir aspectos de si, mas sim conhecer-lhes os significados e motivações profundos para, nesse nível fundamental, corrigi-los, transmutá-los ou mesmo dissolvê-los (para a energia ser re-utilizada em outra área, algo muito semelhante à transmutação). Ou seja: em última análise, fazem exatamente o que as escolas de psicologia de profundidade sugerem seja feito.
Certo. Fantástico, Eugênia. Que mais pode nos dizer sobre o assunto?
Que a sombra é parte da alma humana, as partes desconhecidas de si e que, portanto, contém todo o potencial de divindade que foi negado ao indivíduo ou que ainda é impossível desdobrar, num nível consciente, e que, portanto, não existem, na sombra, apenas os traços indesejáveis de caráter e personalidade, mas os elementos numinosos, as formas transcendentes de ser, agir e sentir. E que, assim, como muito bem anunciou Jung, a criatividade e a motivação, a vida e a alegria, a força e o sentido para viver residem na sombra. Eis porque Jesus disse que deveríamos amar nosso inimigo (e o inimigo maior, o inimigo axial é a própria sombra, o lado escuro de si) e não julgássemos, porque seríamos medidos com a mesma medida com que medíssemos os outros. Eis a grande questão: quando condenamos comportamentos alheios estamos projetando aspectos de nós mesmos em tais pessoas, que, por sua vez, serão, dentro de nós próprios, alijados, cada vez mais, de um nível consciente de expressão, descendo, progressivamente, aos submundos de nossa mente, criando tensões, rupturas e erupções violentas, desde as auto-sabotagens aparentemente ingênuas a grandes crises orgânicas, relacionais ou espirituais.
O que você sugere, Eugênia, como técnica de trabalho com a sombra, a fim de que lhe assimilemos o conteúdo profundo, importante, substancial para nosso crescimento, paz e felicidade?
Que cada um procure atentar-se para os elementos pouco dignos de si, ou menos nobres. Que se faça, todos os dias, ou ao menos uma vez na semana, um inventário de emoções indesejáveis, sentimentos vis, vazios vergonhosos, indiferença e tédio. Crie-se uma personagem para esse conjunto de traços abomináveis de si. Dê-se voz a essa personagem. Dê-se imagem a esse ser, que, na verdade, é uma parte do si próprio. E, ao fim, preste-se atenção ao que ele tem a dizer, pedir, reclamar. Esse hábito de interação com a sombra, por mais delirante que pareça a alguns, é essencial para que se mantenha saúde psicológica e espiritual, num mundo conturbado e conflitivo, como o terreno, dos dias que correm.
Eugênia, mas há pessoas que vão, francamente, dizer que não possuem esses traços medonhos em si.
Não admitir a existência de tal personagem sombrio dentro de si é extremamente perigoso, porque denuncia uma mente arrogante, além da ignorância e pouco auto-conhecimento que tal assertiva (caso sincera) revela. Embora seres luminosos, profundamente sábios, não possuam, em tese, o que poderíamos chamar de sombra psicológica, no sentido mórbido e dantesco que se apresenta no nível humano de consciência, mas apenas sementes de mais luz que vão lentamente germinando dentro e fora de si, rumo a níveis mais altos de evolução, não é razoável nem lúcido alguém se categorizar, encarnado na Terra, pertencente a esse classe de seres luminíferos. Ainda que alguém não se sinta possuindo nenhuma ordem de sentimentos infelizes (o que é extremamente suspeito), a prática do trabalho com a sombra será, no mínimo, de valia inestimável para a interação com aqueles que não se afinam com o seu modo de ser, uma forma de processar conflitos inconscientes com aqueles que não se compatibilizam com sua natureza. Normalmente, porém, quando começa um trabalho com a sombra, o indivíduo passa a descobrir, progressivamente, elementos em si que nunca imaginou poder portar. Um homem forte e másculo pode descobrir um lado infantil, medroso e vulnerável dentro de si. Uma mulher frágil e dependente pode descobrir, em si, camuflada e pérfida, uma tirana mesquinha e sádica. Uma personalidade aberta e moderna pode revelar, para si, aspectos vergonhosos de preconceito e discriminação. Sentimentos, emoções e impulsos dificilmente admitidos (ao menos publicamente), logo começam a ser vistos com clareza na câmara secreta do coração: inveja, ambição, ganância, ciúmes, perversidade, exibicionismo, orgulho e vaidade, entre muitos outros, talvez ainda mais difíceis de serem reconhecidos no imo de si, como: ímpeto de mentir, trair, caluniar, roubar e, segredo dos segredos: matar! Na verdade, não admitindo conscientemente portar tais impulsos, os seres humanos acabam dando vazão indiscriminada a eles, por meios sutis, como, por exemplo, matando um pouco todos os dias o cônjuge ou a mãe, através de pirraças intermináveis.
Todo ser humano tem uma parcela de luz e de sombra. Os percentuais variam e é por isso que somos diferentes (temos combinações personalíssimas de características humanas gerais, que nos distinguem como pessoas singulares) e também é isso que nos tipifica o nível evolutivo. Mas quem é que poderia dizer que não traz mais partes de sombra em si? Ao reverso do que se costuma imaginar, quanto mais iluminada, verdadeiramente, é uma criatura, mais ela propende a enxergar aspectos menos lisonjeiros em si, como a história dos santos (os verdadeiros santos) revela. São Pedro, por exemplo, mui sabiamente, fala em epístola à humanidade: “Não há mal que um irmão meu cometa que eu não possa cometer.”
Fabuloso, Eugênia. Algum alerta a fazer nesse trabalho de descida ao submundo?
Que descemos para subir. E que, portanto, o objetivo é assimilarmos partes importantes de nós próprios, renegadas e regateadas à obscuridade de uma pseudo-inexistência (perigosa, porque funciona como uma panela de pressão psíquica, que explode volta e meia, nos surtos dos maus atos incontroláveis, como compulsões, vícios, atos falhos, eclosões de raiva ou de sexo desregrado, etc.). E devemos absorver tais partes de forma saudável, equilibrada e justa. Quem fizer isso descobrirá a luz oculta nas trevas, e, como disse o próprio Jesus: “Conhecereis a verdade, e a verdade nos libertará.” Estamos normalmente dispostos a conhecer verdades agradáveis e luminosas, só que somente na treva encontraremos o ouro mais valioso, justamente porque é difícil para lá ir. Se a verdade fosse sempre agradável e doce, todos se iluminariam facilmente. Mas o caminho é áspero e íngreme exatamente por ser necessário conhecermos verdades duras sobre nos mesmos, mais do que sobre os outros. Coisa curiosa é que, para quem se conhece profundamente, todos os atos espirituais e morais aparentemente impossíveis para quem não faz o trabalho com a sombra, tornam-se naturais e inevitáveis, como compreender, perdoar e amar. Tornamo-nos mais maduros, admitindo a nossa e a complexidade alheias, aprendendo a amar, apesar das diferenças, dos conflitos, das repulsas e das “vergonhas”. Aprendemos a tolerar contradições, ambivalências e até mesmo pequenas traições, sem sequer nos abalarmos. Obviamente que quem faz o trabalho com a sombra não fica atoleimado e submisso. Justamente o reverso: tem maiores condições de resistir ao mal, reagir e defender-se construtiva e eficazmente, sem se intoxicar com a maldade alheia. Mas também se está em condições de ver que muito sentimento de injustiça está baseado na ignorância de quem realmente somos e, principalmente, de quem o outro é. Assim, vítimas podem perceber que são ou foram mais vilões do que aqueles que condenam, e, mais ainda, podemos descobrir, nos “monstros” com quem convivemos, crianças carentes ou bichinhos inconscientes, que nos pedem carinho ou educação, e não violência ou desprezo, que nos tornariam exatamente aquilo que tanto combatemos.
(Diálogo travado em 29 de fevereiro de 2004.)