Benjamin Teixeira
pelo espírito
Eugênia.

Há alguns anos atrás, visitei jovem mãe que se deitava sobre leito de pedra, na via pública. Choramingava baixinho, lamentando a própria sina, com o seio carente de leite, o rebento no colo, esquálido. Olhou em volta, e viu que, em meio à noite, jovem de idade similar à sua desfilava em carro aberto, coberta de glória, riqueza e fama, papel picado sendo atirado do alto dos edifícios, a multidão a aplaudi-la e aclamá-la, frenética. Angustiada, perguntava-se por que Deus permitia haver disparidades tão grandes entres Suas criaturas.

Quarenta anos se passaram. Visitei hospital da Terra, onde minha pupila jazia internada. A grande diva do cinema havia sido reduzida a um punhado de ossos sobre a cama, vítima da cirrose hepática. Uma sombra quase inacreditável, na deformidade da beleza feérica que a engalanou na juventude e fora totalmente sepultada no tempo, pobre, esquecida e sozinha, pois que nem filhos ousara ter, para não prejudicar as formas perfeitas de mulher-fatal que tanto a celebrizaram.

Em meio a grande angústia, lembrou-se de seu passado de glória, e perguntou-se por que Deus lhe permitira provar tanta glória, para “roubá-la” toda depois.

Foi, a essa altura das reflexões, raptada de seus pensamentos pela presença de um médico que se dobrou sobre seu catre de dores acerbas, e ouvi-o dizer:

– Senhora, minha mãe soube que era minha paciente e soube também de sua situação, e pediu que viesse aqui e lhe desse atenção especial.

Encantada com a deferência a que não mais estava acostumada, apesar de tão adulada na juventude, rasgou um rebotalho de sorriso, sobre as faces enrugadas e flácidas, e, curiosa, indagou:

– Quem… quem é sua mãe? Você tem idade de ser meu filho, sua mãe deve ter idade similar à minha… talvez a conheça!…

– Não, não a conhece. Ela um dia apenas assistiu a um desfile seu, em carro aberto, numa chegada sua de viagem ao exterior. Disse-me que eu era neném de colo e a senhora uma grande estrela do cinema. Mandou cobrir-lhe de atenções porque, hoje, ela sabe que Deus nos tira coisas ou nos faz passar pela penúria, para que descubramos outras, muito mais importantes, e que a dor que sofria na época converteu-se em fortaleza e solidariedade por aqueles que sofrem. A senhora não a conhece porque minha mãe, coberta de chagas, deitada na via pública, num canto escuro da rua, era uma mendiga com seu filho faminto, este que agora lhe fala. Pediu para dizer que deve à senhora ter visto que era possível lutar por uma vida melhor, já que Deus é justiça e bondade e não poderia ter filhos preferidos. Por isso, empenhou-se por me criar com esmero e me fomentar o gosto pelos estudos. Hoje, moramos, eu, ela, minha esposa e meus filhos pequenos, no bairro onde a senhora morava à época, e teremos a honra de recebê-la como hóspede eterna, quando sair dessa fase difícil de convalescença. A senhora poderá se sentir pertencente à nossa família, isso se desejar nos honrar com sua presença de grande estrela.

Em lágrimas, a diva decadente continha a custo os soluços e disse:

– Estava há pouco a blasfemar, sem entender por que Deus me trouxera a essa vala de desgraças, enquanto sua mãe, que provou da miséria, estende a mão para me ajudar, quando poderia nutrir mágoa por mim, até hoje, por não ter gozado da juventude que usufruí. Diga a ela que aceitarei seu convite, e muito me honra ser recebida em sua casa, porque, se, na minha juventude, fui recebida com papel picado pelos homens, ela o será, no outro mundo, com honra e louvor, pelos anjos do Senhor! Porque se eu fui estrela na Terra, por pouco tempo, ela será estrela no céu, para sempre!…

(Texto recebido em 26 de agosto de 2004.)