Benjamin Teixeira
pelo espírito
Eugênia.

E, logo depois, chamando para perto de si o povo e seus discípulos, disse-lhes: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Porque o que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas o que perder a sua vida, por amor de mim e do Evangelho, salvá-la-á. Pois que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua própria alma?”

(Marcos, 8:34-36; Mateus, 10:38-39; Lucas, 9:23-25; João, 12:25-26)

Para aqueles que nasceram sob o signo da modernidade, tais palavras de Jesus soam, no mínimo, absurdas. Ninguém, atualmente, jamais adotaria, voluntariamente, uma filosofia sacrificial de vida, ainda quando causas nobres estejam em jogo. Ainda há gestos de renúncia pessoal, em prol de ideais e causas, pessoas e instituições, assim como o profissional que dá sua vida pela empresa de que participa, ou a mãe de família que se esquece de seus interesses pessoais, focando toda sua atenção e energia, no bem estar de seus filhos. Todavia, no que tange diretamente ao sacrificar-se, como caminho de sublimação, de ascese, de espiritualização, ninguém mais compreende-o como adequado, o que é acertado.

Todavia, como sempre, a complexidade do Evangelho deve ser sempre levada em conta, para que não recaiamos em interpretações equivocadas de seu conteúdo elevado e profundo. O próprio Jesus, n’outra passagem de sua vida pública, deixa claro que não adotava tal perspectiva, ao, parafraseando o profeta Oséias, dizer, em nome de Deus: “Misericórdia quero, e não sacrifício”. Portanto, deveremos buscar o sentido oculto das palavras do Cristo, numa leitura metafórica do texto, lendo-lhe as entrelinhas, escritas no simbolismo de sua linguagem cifrada, indispensável ao falar para os homens e mulheres incultos e primitivos daqueles dias.

Indispensável compreender, como prioritária e fundamental, a ótica intra-psíquica de exegese dos textos evangélicos. Jesus, assim, representa a Força Superior, o Poder Divino, no âmago das criaturas, o Eu Superior, ou Centelha Sagrada, a manifestar-se pela voz da superconsciência (comumente conhecida por “voz da consciência”). O povo, nessa forma de leitura do texto bíblico, representa a multidão de pensamentos, emoções, sentimentos, traumas, aspirações, desejos e neuroses que povoam a psique de todas as criaturas. Eis porque, sempre que aparecem, mostram-se confusos, súplices, doentes, mendigando toda ordem de socorro, cura ou salvação. E os discípulos, por sua vez, simbolizam as potências da alma, postas à disposição do Centro de Consciência, enfeixado no Cristo.

Tomando esse prisma interpretativo, a hermenêutica do texto faz-se clara.
Quem, por exemplo, discordaria de que não uma não podemos, simplesmente, seguir os impulsos e caprichos de emoções e pensamentos esparsos, desconexos da totalidade que constitui a individualidade que somos? Quem discordaria de que precisamos submeter toda a multidão de aptidões, desejos e necessidades a um Centro Diretor, que considere as necessidades e aspirações do conjunto?

O que acontece quando, no interior de um organismo, uma célula se rebela, multiplicando-se ao seu bel-prazer? Rapidamente, os tecidos desse corpo são tomados por insidioso câncer, que, não sustido em tempo, devora toda a máquina biológica, através da metástase, levando-a ao óbito. E o que diríamos, no tecido social, de um indivíduo que não obedece a leis, que só visa ao interesse pessoal e que, assim, vampiriza recursos e cria a desordem por onde passa? Esse é o conceito, em amplo sentido, de criminoso, que precisa ser alijado do convívio social, para não comprometer a paz e a ordem comuns.

O mesmo se deve entender, no que concerne à gerência da própria alma. Há pessoas que almejam viver num paraíso de liberdade, compreendendo liberdade como total ausência de critério, bom senso e justiça. Nesses casos, estabelece-se o reinado da desagregação de forças, significados e propósitos da existência, e, em pouco tempo, esse indivíduo terá conduzido sua vida à beira do precipício, arrastando consigo muita gente incauta que lhe cruze caminho. Adolescentes e crianças, não devidamente educados, podem acreditar que vida feliz seja essa forma de liberdade inconsciente e irresponsável (de licenciosidade e libertinagem), num retorno selvático ao império dos instintos, acrescendo-se toda ordem de degradações de que é capaz o ser humano, quando, com seu complexo potencial evolutivo, lança-se aos planos animais de consciência que lhe não mais dizem respeito. Consultórios psiquiátricos, manicômios judiciários e clínicas de desintoxicação estão abarrotados desses psicotipos, além, é claro, de penitenciárias e submundos do crime e do vício e as altas cúpulas da corrupção terrena.

Fica muito lógico e claro, assim, o pensamento de Jesus, quando lido desse ângulo de observação. A cruz, se analisarmos a alegoria crística com cuidado, era instrumento que sustentava o corpo da vítima acima do chão, sem que pudesse ela alcançar o céu. É exatamente isso que caracteriza o esforço de disciplina, esforço, trabalho e determinação por realizar, melhorar-se e produzir em níveis cada vez maiores de qualidade e quantidade (se for o caso). Quem, de sã consciência, suporia possível uma existência sem disciplina e organização, sem metas e filosofia de vida, sem valores e sem critérios de comportamento?
Quem, que detenha um mínimo de maturidade e bom senso, poderia considerar longinquamente viável uma vida que peque por excesso, desmazelo das paixões e toda forma de incontinência, indisciplina e desorganização?

Foi nesse sentido que Nosso Senhor Jesus apelou para o bom senso das massas, estimulando-lhes, assim, o desenvolvimento de um discernimento mais acurado. Tratando com gente ignara e simples, precisava o Mestre corporificar, em si, a representação do Eu Maior de todos os seus ouvintes. Hoje, porém, podemos já entender que o Mestre aludia ao nosso Eu Superior, que deve ser sintonizado com a Vontade Divina (ou não será superconsciência e sim superego – a introjeção de conceitos e preconceitos culturalmente transmitidos), e, por fim, que deve definir prioridades, metas e caminhos a serem tomados pelo indivíduo.

E de que trata esse Eu Superior, sumariamente? De ideal, de vocação, de paz de consciência, de todos os valores superiores do ser humano como: família, sentimento, nobreza, caráter, alma! Sempre que alguém descarta ou põe em segundo plano o reino do espírito, está se candidatando a toda sorte de amargas decepções senão de funestas e trágicas conseqüências no futuro, talvez bem mais próximo do que imagine. Colocar a aquisição de riqueza, prestígio e poder, em todas as suas formas de fama, patrimônio, cargos públicos, titularidade acadêmica ou beleza física, acima dos objetivos precípuos da existência, como o amor dos filhos, de um ideal artístico ou profissional genuínos, de um chamado da alma para a religião ou para a espiritualidade, de uma convocação divina para uma certa causa ou propósito ecológico, coletivo ou espiritual, por mais se julgue alguém seguro dessa sua louca decisão, cedo ou tarde, sofrerá a inexorável conseqüência de descobrir que “vendeu a alma ao diabo” e que, então, sofrerá longos períodos de dor, para reparar a trilha de devastação que deixou na sua e na vida dos entes mais queridos, quiçá tendo que aguardar oportunidade para ressarcir-se de tanto sofrimento causado a si e aos outros, em distantes reencarnações futuras, enquanto, inconsoláveis, terão que esperar por tal ensejo, contemplando todo o desastre de que são responsáveis, nas mais cruentas e sutis minúcias, que engendraram na sua e na vida das criaturas mais preciosas de sua alma, que, por seu turno, magoadas e decepcionadas com eles, senão horrivelmente comprometidas por sua influência, tanto quanto eles próprios, incendiados com remorsos indescritíveis… em regiões de sofrimento inapelável…

Creio não seja desnecessário dizer que essa espera-contemplativa do pior seja a mais medonha forma de inferno a que uma criatura equivocada possa ser conduzida.

(Texto recebido em 18 de março de 2004.)