Crônicas de Gustavo Henrique
Benjamin Teixeira pelo espírito Gustavo Henrique.
Há muito tempo atrás, uma jovem forasteira viveu num reinado distante. Era bela como uma flor de lis. Tinha olhos de um cintilante azul e, quando passava, enchia o ar de aromas indefinidos, como se o paraíso abrisse alas para seus passos.
Viera de povoado afastado da civilização, inculta, mas alfabetizada, com rudimentos de etiqueta e polidez, de modo que tinha uma base para adentrar bons lugares, apesar da origem humilde. Na verdade, parecia uma dama em trapos.
Certo dia, poucas semanas após chegar à cidade grande, a bela capital do reino que a hospedava, um guapo rapaz viu-a tirar água do poço, para a anciã bondosa que lhe contratou os serviços como doméstica, e caiu imediatamente presa de seus impressionantes encantos feminis.
– Quem és tu, bela jovem? Nunca vi rosto mais belo em todas essas redondezas.
Enrubescendo visivelmente, a menina-moça deixou a cabeça pender sobre o peito com um olhar lânguido e um sorriso tímido. Percebendo que não obteria resposta mais clara da formosura em pessoa que acabara de conhecer e por quem já estava completamente enamorado, o rapaz expansivo voltou à baila, confiante do próprio fascínio e charme viris:
– Vejo que és doce, mas acanhada. Poderia, ao menos, saber o seu nome?
– Juliette.
– Lindo nome, mas não tanto quanto sua portadora. Não vai querer conhecer meu nome?
Com um meneio discreto de cabeça, a moça fez menção afirmativa.
– Sou João de Bourbons. Já ouviu falar de mim?
Tomada de um fortíssimo sobressalto, a jovem prostrou-se ao chão, encostando a testa na areia que contornava o poço.
– Alteza Real, aceite minhas sinceras e humildes desculpas…
Pulando fagueiro de sobre sua montaria, o jovem herdeiro do trono envolveu os ombros franzinos de Juliette, apoiando-a para que se levantasse, e lhe disse, em voz mais terna do que lhe era habitual:
– Por Deus, não faça isso. Eu é quem deveria prostrar-me aos seus pés, Diva Encantada.
João não sabia como aquelas palavras lhe saíram tão fáceis, naturais e automáticas, em se dirigindo a uma mera plebéia e sendo tão pouco dado a galanteios baratos. Um impulso misterioso lhe fizera agir daquela forma. Não saberia dizer como, mas era como se as palavras se lhe tivessem sido alojadas no cérebro, provindas de algum lugar ignoto.
Juliette se levantou, trôpega, a cabeça completamente voltada para baixo, os cabelos a lhe encobrirem os ombros, delicadamente, e a ocultarem o rosto belíssimo, formando uma como que cortina mística de encantos. Com doçura que lhe era pouco comum, João levantou-lhe o queixo mimoso e pôde, então, perceber que as faces da jovem donzela estavam encobertas de lágrimas.
Os anos se passaram. João não apenas se apaixonou pela jovem, criou problemas de Estado por insistir consorciar-se com alguém que não só não era componente de nenhuma família real estrangeira, como nem sequer era uma nobre patrícia. Mas, herdeiro único em um país de regime absolutista, o precedente lhe foi aberto, e ligou-se em núpcias a Juliette, antes que três anos se completassem daquele dia no poço. A dama maltrapilha converteu-se na mais invejada mulher do reino, com ares de diva, com porte majestático, que, porém, já lhe era típico, desde antes esses sucessos.
A grande questão, porém, é que João era portador de moléstia misteriosa e desconhecida que lhe minava as forças a pouco e pouco até que, em menos de uma década após seu casamento, desceu ao túmulo, sem deixar descendentes. A estranha doença parecia-lhe também afetar a fertilidade.
Com isso, Juliette foi colocada, pelo fado, em situação extremamente delicada, já que não tinha dado um herdeiro a João, pelo que a culpavam, o que era corriqueiro à época (a culpa pelas questões de fertilidade era sempre da mulher). Seu porte de dama, envolta numa aura ímpar de dignidade e altivez permaneciam, inalteráveis. Mantendo o título de princesa, foi enviada, porém, para província distante, nas fronteiras com o país vizinho de onde viera, quase quinze anos antes, sem futuro, sem amigos, mas cheia de esperança. O castelo quase fechado há meio século lhe foi aberto, e Juliette foi lá instalada ricamente. Alguém que fora por dez anos casada com o príncipe herdeiro do trono jamais tornaria a ser plebéia novamente.
Foi aí que, um belo dia, Henrique apareceu. Sim, Henrique, seu querido amado de adolescência, de seus primeiros albores de afeto feminil. Henrique lhe houvera prometido o mundo e o céu, mas era um simples vassalo, em feudo de onde Juliette já planejava fugir, como de fato fez. Não queria esse futuro para si, e, gentil mas peremptoriamente, rejeitou sua proposta de bodas.
Coração destroçado, Henrique prometeu a si mesmo nunca se casar, comunicando essa sua decisão a Juliette. Preferiria enterrar seus sonhos de felicidade, a desviar seu coração da amada. E Juliette, que nunca acreditara em profecia tão absurda, viu-o em meio ao mercado. Atravessara a fronteira em compras. Tornara-se o servo de máxima confiança de seu Senhor, e viera em missão comercial, para a feira da província da nação vizinha, onde Juliette era autoridade maior.
Incontinente, Juliette ordenou a um de seus áulicos o chamassem… e o reencontro aconteceu, naquela inesquecível tarde de domingo, quinze anos depois de haverem enterrado seus sonhos de juventude. Ansiosa, após a efusão de sentimentos, nas primeiras palavras trocadas entre os corações que tanto se amaram, deu largo espaço ao interrogatório recíproco, prenhe de afeto e de saudade, até que, nos primeiros minutos de conversação, Juliette, já revivendo todo o calor da paixão juvenil, ficou sabendo que Henrique mantivera a promessa, em que jamais acreditara, de nunca se casar. Juliette estava obstúpida… Não podia crer no que ouvia… Parecia fantástico demais para ser verdade, mas era… O sonho de amor… E, confirmado o que lhe parecia quase impossível, passou a ouvir, qual música que um coro de anjos executasse especialmente em sua homenagem, uma longa e exaltada seqüência de declarações apaixonadas de amor, dos lábios amados que não via há tanto tempo…
O céu se voltara para Juliette, porque ela se resolvera por ser fiel, primeiramente, a seu coração, às intuições de seu ideal, de seu destino, para depois abrir-se à inspiração do afeto… E Henrique, de tabela, beneficiou-se com a ousadia, a coragem e a visão vanguardista de uma jovem invulgar que venceu num mundo de homens, muito embora pelos mais tortuosos caminhos que se poderia imaginar.
Juliette, então, por fim, casou-se com seu grande amor. Não, todavia, sem antes haver se tornado tudo que sentia tivera sido destinada a se tornar. Fora difícil dizer não a Henrique, quase menina, mas o sim que havia dentro de si era forte demais para que ela se deixasse arrastar para um caminho longe de sua razão de ser, de sua missão de vida.
Você, também, prezado(a) leitor(a), pode ser uma Juliette da vida, ou, quiçá… um céptico, mas leal Henrique. Talvez, todavia, não seja nem um nem outro, imaginando-se perdido num mundo inescapável de vassalagem, condenado a viver em feudos de idéias tacanhas e destinos mesquinhos. Mas você pode mudar, se quiser…
Buscai primeiramente o reino dos céus e sua justiça, disse Jesus, e o demais se vos acrescentará. Não queira menos que a totalidade. Não aceite menos que a felicidade. Não admita menos que a abundância. E, para isso, só há uma vereda: siga suas intuições, saia à luta para realizar seus sonhos, ainda que tenha que adaptá-los às circunstâncias ou limitá-los a seus potenciais verdadeiros, mas nunca se acomode a menos que tudo que puder fazer, ser ou se tornar. Fazer o contrário seria abdicar da condição de Filho de Deus e sentenciar-se ao inferno da frustração, ainda em plena vida física…
(Texto recebido em 6 de maio de 2001.)