Crônicas de Gustavo Henrique
Benjamin Teixeira
pelo espírito Gustavo Henrique.
A xícara se quebrou em mil pedaços, espatifando-se no chão.
Geraldo aproximou-se para ajudar Nice, emocionada demais com sua presença. Ao reclinar-se na direção do belo piso de azulejos portugueses, seus rostos se tocaram. Nice, ruborizada, abaixou as longas pálpebras para os fragmentos de louça e, impelido por fortes emoções, Geraldo comprimiu-a junto a si, roubando-lhe um beijo apaixonado, ali mesmo, agachados no chão.
– Por favor, sou moça de família.
– Sei disso. Isso também me faz amá-la mais.
– Não é porque seja filho de meus patrões que devo ceder a seus encantos.
– Sei disso, mas estou enlouquecido de paixão.
– Deveria por distância entre nós.
– Impossível, meu amor.
E Geraldo, já de pé, comprime Nice contra a parede, envolvendo-a em fortes emoções, misturadas às sensações arrebatadoras do sexo. Nice ainda tentou resistir, mas, sob as alegações ternas do guapo rapaz e sua ardência viril, totalmente enamorada dele, a jovem de apenas 17 anos rendeu-se ao frêmito de desejo do patrão dois anos mais velho.
Nove meses depois nasceria Murilo, em bairro pobre, muito pobre, subúrbio do Rio de Janeiro. A “Cidade Maravilhosa” ocultava a dor lancinante de Nice, que nunca mais se casaria, e só encontraria, episodicamente, exploradores da sua condição de mulher carente e solitária. Perdera o pai pouco depois de nascer e a mãezinha, enferma, sucumbiu à pneumonia que a acometeu aos apenas 42 anos de idade. Nice ficou sozinha no mundo. Os parentes moravam distante, no interior de Minas Gerais. E ela, naquela imensidão urbana, ficou sozinha para cuidar de Murilo, até o fim da vida, sem qualquer ajuda paterna…
Nice teve uma história vulgar, das muitas que se podem ouvir, nos arredores de grandes cidades, principalmente, no início do século XX. Nice morreu cedo, precocemente vitimada de enfermidade cerebral… morreu de tristeza, desiludida com um tal de Geraldo, que lhe fizera “mal” no início da juventude, e nunca mais a vira, ilhado em seu universo de conforto da alta sociedade. O filho crescera rápido e ganhara o mundo, ao passo que ela, jogada em um asilo para idosos pobres, morreu antes de completar 70 anos, sem consciência de si, atormentada por visões do passado.
Contudo, retornando à vida astral, encontrou-se com Geraldo, após poucos anos, e hoje planejam retornar, pelas vias da reencarnação, sob a tutela de seus mentores espirituais, que coagem agora o incauto conquistador de outrora, aos trâmites da evolução inescapável ao espírito eterno. Geraldo será seu pai, nascerá em classe média baixa e lutará durante toda a vida, para manter um mínimo de dignidade na vida da filha… o espírito de sua antiga empregada doméstica. Não terá mais filhos e perderá a esposa cedo. Padecendo incurável moléstia de pele, inspirará repulsa de todas as pretendentes posteriores… Terá que viver só com ela e para ela, toda a vida… E Nice sofrerá a tentação de se manter distante do pai, envolvida em impressões de repulsa e ódio inexplicáveis, para muito além do que sua enfermidade de pele poderia motivar… Ojeriza essa que tentará conter, educando-se pela religião… Conseguirá?
A vida permite, a vida cobra… A indiferença não é desculpa – é maior peso na conta cármica de quem se exime à responsabilidade. Geraldo está já em vias de reencarnar e, dentro de menos de trinta anos, Nice estará de volta… para resgatar o amor de seu namorado de antanho que a tratou com desprezo mortal. Ele, que a atirou na “rua da amargura”, terá que agora viver em função dela, e, por fim, correr o risco de ser pago com ingratidão e fel, compelida que estaria ela, por estranhos pressentimentos… os resíduos mnemônicos da encarnação anterior.
Há Geraldos e Geraldas por aí… rindo da vida e de seus semelhantes, julgando-se inteligentes e sortudos… Não sabem que terão que pagar muito caro por sua inconsciência, até que um dia portem sentimentos e, assim, respeitem, espontaneamente, os sentimentos de outras pessoas…
Seria você um Geraldo???…
(Texto recebido em 26 de janeiro de 2003.)