Os Dois Fiat’s Bíblicos (*)
Vamos considerar que, apesar da tendência ao multiculturalismo que deve crescer e se aprofundar, como princípio de respeito e convívio pacífico entre os povos, nesta era de tanto atrito cultural e civilizacional, a cultura cristã representa o que podemos chamar, empregando o vocábulo jungiano, de inconsciente coletivo ocidental, para questões espirituais e escatológicas. E como a cultura ocidental, pela força imperiosa dos mercados, do livre-comércio e dos princípios sócio-políticos democráticos, torna-se progressivamente hegemônica, podemos, destarte, inferir que nossas reflexões baseadas no texto bíblico (em vez de buscarmos outras fontes, que nos enriqueceriam de erudição o texto, mas nos afastaria do propósito de simplificar o que já é naturalmente complexo demais) nos encurta o caminho em direção à fonte d’onde promana ou onde se retratam todas as problemáticas mais profundas do gênero humano, no atual contexto e momento da crise planetária.
É interessante notar que informações quase óbvias, precisam da chancela dos séculos, para, com o suficiente amadurecimento da mente popular, poderem eclodir à margem superior da consciência, aflorando do fundo difuso de inconsciência psíquica coletiva. Há dois Fiat’s (do latim: “Faça-se”) fundamentais na Bíblia: O Fiat de Javé e o Fiat de Maria. Veja-os abaixo:
“Deus disse: ‘Faça-se a Luz!’ E a luz foi feita.” (Gênese, 1:3)
“Então, Maria disse: ‘Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a Tua Palavra’.” (Lucas, 1:38)
Pois bem, nelas duas, temos a figura masculina divina que insemina o cosmo de vida, e a figura feminina divina, não por acaso “fertilizada” com a visita de um arcanjo chamado Gabriel, que significa: “Força de Deus” ou “Homem de Deus” (do hebraico: Gabar-el). Simbolicamente, o Pai de Jesus e a Sua Mãe. Por outro lado, de tal modo há a clara alusão a Maria e Jesus serem componentes, ambos, da condição crística (ou búdica) de consciência, o mais alto nível de expressão mental – digamos assim – que um encarnado pode apresentar, que, no trecho abaixo, o intróito do profundamente filosófico evangelho de João, revela que aquela “Palavra”, que se “faria” no “Ventre” de Maria e Ela Mesma eram uma só coisa:
“No Princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus.” (João, 1:1)
A Vida e a Voz de Deus. A Doadora da Vida e o Doador da Verdade – “Lapis Philosophorum” e “Vox Dei” (*1). Um casal místico em profunda fusão espiritual. Jesus não precisou copular com Madalena, como propõem alguns autores modernos, muito embora a famosa discípula, possa, sim, ser colocada, perfeitamente, na condição de grande apóstolo do Cristo. Jesus dispensou o ato sexual, não porque seja “imundo”, vicioso, imoral ou anti-espiritual, mas porque, na condição de grande ser angélico encarnado, exprimia-se num padrão de interação energética e psíquica diversa da animal – a que os seres humanos ainda estão atados, em medidas variadas –, muito embora todo o respeito e cuidado que o sexo deva merecer, no nível humano de consciência. Para Jesus, que funcionava em profunda sinergia com o psiquismo de Sua Mãe, a Divindade se expressava para a Terra, na união transcendente de Suas mentes excepcionalmente desenvolvidas, sem necessidade do atrito dos corpos, para funções fisiológicas que lhe não eram úteis muito menos necessárias à Sua missão divina.
Para dignificar a figura da mulher, ante o inconsciente coletivo, não precisamos apenas fazer de Madalena um apóstolo, porque há outros doze, todos homens. Por sinal, entre os grandes místicos, sábios e luminares da humanidade, podemos asseverar que praticamente não temos personalidades femininas. Gautama Buda, Láo-Tsé, Confúcio, Zoroastro, Maomé, Krishna (embora lendário e não histórico) o próprio Jesus. Os sábios axiais da Índia, os grandes filósofos da Grécia Antiga… Homens, homens, homens. Quase sempre, quando a figura feminina aparece na atividade relígio-filosófica, como, de ordinário, em quase todas as áreas da atuação e conhecimento humano no passado, tratava-se de figura mitológica, poética ou imaginária. Estamos falando de componentes do topo das hierarquias religiosas ou filosóficas da humanidade, dos grandes construtores de civilização e dos iniciadores de linhas ideológicas basilares da espécie. Entre oficiantes do culto, mulheres a mancheias. Entre grandes líderes e autores intelectuais do movimentos, homens e sempre homens, quase sem exceções.
Claro que há uma etiologia complexíssima que justifica tal presença masculina acachapante, em relação a uma praticamente ausência feminina, como o lembrarmos a rudeza dos tempos primitivos, que exigiam uma retração da mulher à esfera limitada de situações discretas, por força, normalmente de opressão cega e indiscriminada, etc., etc. Mas os grandes dirigentes da evolução da Terra, de altiplanos da Espiritualidade Superior, sabiam, desde sempre, que chegaríamos ao ponto de desenvolvimento sócio-cultural, em que tais restrições à mulher deixariam de existir, e em que, muito pelo contrário, pela necessidade do despertar e dinamizar do feminino no inconsciente das massas, à beira do abismo com os excessos levados às últimas conseqüências do patriarcalismo multi-milenar, uma Imagem de mulher histórica teria que ser “descoberta”, e não apenas uma imaginária-mitológica, no tecido de textos antigos, chancelados pela tradição e autoridade dos séculos, figura histórica esta que reforçasse a realidade psíquica do mito, personalidade que, entretanto, para ter chegado incólume aos dias de hoje, teria estado eclipsada, estrategicamente, sobrevivendo, assim, ao império milenar do machismo, até que sua superioridade ocultada propositalmente no princípio pudesse ser desvendada, nas entrelinhas e mensagens subliminares ou alegóricas dos ditos textos, em tempos futuros… tempos futuros estes… que chegaram!
A Grande Redentora da Humanidade, Grande Mestra-Oculta e Mãe da Humanidade
“Então, o Senhor Deus disse à serpente: (…) ‘Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar’.” (Gênese, 3:14-16)
Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher vestida de sol, a lua debaixo dos seus pés (…) Estava grávida e gritava de dores, sentindo as angústias de dar a luz. Depois apareceu outro sinal no céu: um grande Dragão vermelho (…). Esse Dragão deteve-se diante da Mulher que estava para dar a luz, a fim de que, quando ela desce a luz, lhe devorasse o filho. (…) O Dragão e seus anjos travaram combate, mas não prevaleceram. E já não houve lugar no céu para eles. Foi então precipitado o grande Dragão, chamado Demônio e Satanás, o sedutor do mundo inteiro. (…) Eu ouvi no céu uma voz forte que dizia: “Agora chegou a salvação, o poder e a realeza de nosso Deus, assim como a autoridade de seu Cristo, porque foi precipitado o acusador de nossos irmãos (…)” (Apocalipse, 12: 1-10)
O Messias foi tão esperado – e ainda há os que o esperam (na tradição judaica). Mas, ironia das ironias, o que o texto bíblico deixa claro, nestes trechos culminantes dos dois livros de extremidade da Bíblia: o primeiro e o último, respectivamente: o Gênese e o Apocalipse, é que uma Mulher enfrentaria e derrotaria o mal e não um homem. Claro que um Homem-crístico, nosso Mestre Jesus, falou em nome desta Mulher todo o tempo, Ele mesmo partícipe de sua condição mental superior. Mas os grandes gênios ocultos, condutores da humanidade terrena, já sabiam, de antemão, com vários séculos de antecedência, como dissemos acima, que o maior dos dois espíritos, teria que ser Ela e não Ele, de um modo, porém, que só ao tempo certo tal revelação pudesse ser trazida a lume. Por sinal, apocalipse, tanto em sua versão latina (“apocalypsis”), como na grega (“apokalúpsis”), significa “revelação”. Por outro lado, nesta linha de estudos etimológicos “reveladores”, cabe lembrar que o verbete grego “drákõn”, do qual deriva o latino “draco”, que deu origem ao vocáculo “dragão” do Português, com suas diversas variantes neo-latinas similares, significa: “serpente”. Ou seja: a revelação do Gêneses deixa claro que uma Mulher seria a libertadora da Humanidade, e Jesus faz alusão a isto, fazendo uso de linguagem hermética, mas não difícil de decifrar, quando, “estranhamente”, chama sua Mãe de “Mulher”, para deixar claro à humanidade que se dirigia àquela Mulher Mítica prometida nos escritos sagrados bíblicos:
“Como viesse a falta de vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: ‘Eles já não têm vinho’. Respondeu-lhe Jesus: ‘Mulher, isso compete a nós? Minha hora ainda não chegou’. Disse então sua mãe aos serventes: ‘Fazei o que ele vos disser’.” (João, 2: 3-5)
Uma Mulher, realmente, que falava para um tempo que não era aquele. A superação do maniqueísmo simplista da antigüidade, em que um “homem de Deus” não se podia imiscuir e se preocupar com questões mundanas, como a alegria de ébrios numa festa regada a bebidas alcoólicas, está clara no estupor de Jesus que, pasmo, tenta certificar-se com sua Mestra-Mentora: “Mulher”, ou seja: “Você que é Aquela Mulher Enviada por Deus para derrotar o Mal no mundo, e a Quem, portanto, devo obediência: tem certeza de que temos a ver com ‘isto’?” Ela, porém, que não podia discursar sobre relativismo evolutivo e necessidades psicológicas específicas a determinados pontos de aprendizado espiritual, incluindo, até mesmo, a descida e a plena vivência do material para, em saturando e “esvaziando” aquele nível de experiência, poder-se singrar, com segurança e inteireza, para o estágio seguinte de consciência, restringiu-se a dizer, para os serviçais da casa: “Fazei o que Ele vos disser”, deixando claro que Ele era o Representante e Porta-Voz d’Ela e do Governo Oculto do Mundo e, que, por conseqüência, Ele lhe devia obediência, pela sua condição evolutiva superior, sendo sua iniciadora e mestra,e que, portanto, nem sequer precisava prestar esclarecimentos, quando não oportunos ou mesmo impossíveis. O próprio Jesus deixou claro, em outros momentos, que não obedeceria sua mãe, apenas por ser mãe biológica. A obediência de Jesus seria por Ela ser sua mãe no plano físico? Numa certa ocasião, porém, Ele aproveita para deixar claro que não atenderia a um apelo d’Ela, por ser Sua Mãe. Maria, assim, deixou-se conduzir a tal situação, para que isto ficasse claro à posteridade. Ou seja: que Jesus a seguia, por Ela ser Sua Mãe do Espírito, e não mãe da carne. Sua orientadora do Céu e não responsável na Terra. Vejamos:
“Ele respondeu-lhes: ‘Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?’ E, correndo o olhar sobre a multidão, que estava sentada ao redor dele, disse: ‘Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe’.” (Marcos, 3:34-35; Mateus, 12:46-50)
Logo, Ele a obedeceu, cegamente, no episódio das Bodas de Caná, na Galiléia, sem nem receber o esclarecimento que não poderia ser dado àquela época, porque simplesmente não seria compreensível, por ser Ela Sua Mentora. Ele estava, como todo discípulo diante de seu mestre, aguardando o momento da iniciação. Tanto é que nenhum “milagre” havia sido realizado até aquela ocasião. E, somente com este comando de seu guru, Maria, começou Ele sua vida pública, efetivamente.
Interessante a alusão à filosofia da felicidade, da integração do físico ao espiritual, tão característicos à nossa época, e como fica claro que Maria se dirigia aos nossos dias e não àqueles, parecendo, para antes, tratar-se de um mero “capricho de mãe”, que “se apiedou do sofrimento alheio, mesmo que numa situação ‘imprópria’”. Soava, para os mais atentos, até hoje, estranho e ininteligível, assim como uma equação complexa de física do caos, é igualmente incompreensível para quem mal aprendeu aritmética.
N’outro momento, já tentara Jesus iniciar seu trabalho, e recebeu severa repreensão d’Ela, pelo que silenciou, até Sua nova ordem (a das bodas de Caná), ficando “submisso”, como revela o texto bíblico. Refiro-me à famosa passagem de Jesus-Menino, no templo com os doutores da Lei. Observe:
“Quando eles o viram, ficaram admirados. E sua mãe disse-lhe: ‘Meu filho, que nos fizeste?! Eis que teu pai e eu andávamos à tua procura, cheios de aflição’. Respondeu-lhes ele: ‘Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo me ocupar das coisas de meu Pai?’ Eles, porém, não compreenderam o que ele lhes dissera. Em seguida, desceu com eles a Nazaré e lhes era submisso. Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração.” (Lucas, 2:48-51)
O único ponto que deixa difuso o texto é quando há o “não compreenderam o que ele lhes dissera”, mas deve-se lembrar que, em textos como o bíblico, deve-se procurar mais o sentido que a literalidade, após tantas traduções e séculos transatos desde sua redação. Não fica difícil traduzirmos, assim: E eles não “compreendiam” a teimosia de Jesus, já que Ele não houvera recebido o comando para começar seu trabalho. Tanto é verdade que se tratou de um deslize do menino-místico, como uma espécie de arroubo da adolescência que desabrochava em Jesus, da forma como aqui interpretamos esta passagem, que o texto diz, metaforicamente, que Jesus “desceu com eles a Nazaré”, ou seja: “desceu” da condição de mestre (“Jerusalém”, onde estavam), para o padrão de incubação, preparação e espera (“Nazaré”), ficando-lhes, após isto, dito literalmente nas escrituras: “submisso”, asseverando o evangelho, por fim, que “sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração”, ou seja: compreendia-as e transformava-as, com a força numinosa de sua condição búdica superior, assim catalisando, lentamente, o desenvolvimento de seu filho crístico.
Há alguma dúvida sobre isto, ainda? Então, reportemo-nos ao que acontece com Jesus, no momento supremo de seu “messianato”:
“E, à hora nona, Jesus bradou em alta voz: ‘Elói, Elói, lammá sabactáni?’, que quer dizer: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’” (Marcos, 15:34; e Mateus, 27:46)
Jesus parece desesperar, para lembrar que, embora um Deus-Pai parecesse abandoná-lo, Maria, materialização viva (simbólica) do Deus-Mãe, a Seus Pés, porém, era a Presença do Criador, num aviso à humanidade futura, de que, ao chegar ao desespero supremo do sistema patriarcal de cultura e sociedade, dever-se-ia se voltar para Ela, e nEla buscar o socorro e solução para o caos e aparente desgraça por que estaria enveredando. E, se ainda há sombra a qualquer hesitação, nesta senda interpretativa, lembremo-nos do que disse o próprio Jesus, naquele instante capital de Sua passagem pelo mundo, confiando a humanidade inteira à sua proteção, representada na pessoa de João Evangelista:
“Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí teu filho’. Depois, disse ao discípulo: ‘Eis aí tua mãe’. E, dessa hora em diante, o discípulo a levou para a sua casa.” (João, 19: 26-27)
Por fim, quando, após tanta luta de Jesus por fazer discípulos e apóstolos o seguirem, sem sucesso, nos passos de redenção da espécie, Maria, na situação mais desesperadora da História do Cristianismo, quando os mais íntimos de Jesus fugiram e se esconderam do populacho, reúne-se com eles num cenáculo e, com apenas alguns dias de prece e meditação partilhados, faz, como Seu poder mental divino, o que Seu Filho não lograra realizar em meses sucessivos de messianato sistemático (*2): convertê-los em lídimos seguidores Seus, como que outros Cristos, menores, certamente, mas ainda assim de algum modo participando da condição e função de Jesus, porque, como relata o livro Atos dos Apóstolos, após aquele rápido período de retiro e oração com Maria, os há pouco aterrorizados apóstolos, saíram do recolhimento para, em nome da disseminação do “Reino dos Céus”, falar línguas desconhecidas e realizar prodígios que, até então, só Jesus realizara. Mas isto não era de se estranhar. Como Ela havia “formado” Jesus, tinha poder para delegar tal função a outros, que julgasse aptos para tanto. Verifiquemos o tal trecho a que aludimos:
“Tendo entrado no cenáculo, subiram ao quarto de cima, onde costumavam permanecer. (…) Todos eles (os apóstolos) perseveravam unanimemente em oração, juntamente com as mulheres, entre elas Maria, mãe de Jesus, e os irmãos dele. (…) Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo, que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espíritos Santo (…).” (Atos dos Apóstolos, 1:13-14 e 2: 1-4)
Maria nos ouve, e aparece, por toda parte (*3), chegando a dizer, em Fátima, no período obscuro do início do século XX: “Por fim, meu Imaculado Coração triunfará”. Há dois séculos que praticamente não há anúncios de aparições de Jesus, mas as de Maria pipocam em todo lugar. O inconsciente coletivo, a fazer uso da terminologia junguiana, grita pelo Feminino Divino, enquanto culturas patriarcalistas histéricas: o imperialismo econômico invasivo do ocidente e o fanatismo machista do Oriente Médio ameaçam pulverizar a espécie humana do planeta.
Com Ela, vivemos a teodicéia contemporânea. Com Ela, “auxilium christianorum” (auxílio dos cristãos), vivenciamos, atualmente, a “Assumptio Beatae Virginis” (Assunção da Virgem Beatífica ou Feliz – “virgem” significava, na Antigüidade, auto-suficiente), no cenário do inconsciente coletivo e da cultura e aspirações populares, representando tanto nossa “mater natura” (mãe natureza – o ecológico), quanto nossa “mater spiritualis” (mãe espiritual – nossas culminâncias psíquicas transpessoais); deusa imanente, deusa “Gaia” (A Terra, conforme tradição grega), “Mater Dei” (mãe de Deus, matriz do nosso divino interior), quanto a Deusa Transcendente, o Lado Feminino do Criador. É esta a grande “apocalypsis” (revelação) que nos conduzirá à “apokatástasis” (restauração) da pureza e equilíbrio originais da mente e da civilização humanas, contaminadas por gritantes descompensações psicológicas, oriundas da carência e premência dramáticas do Feminino. Afinal de contas, a alma (“psykhé”) é feminina, e, com sua consciência de interioridade, traremos das profundezas abissais de nossas mentes, do “absconditus” (oculto), a “cura animarum” (cura de nossas almas), e, em seguida, engendraremos uma “therapeutai” (terapia) coletiva e o resgate da civilização das bordas do precipício da auto-destruição, do “Harmagedõn”, por meio de uma “contagion mentale” (contágio mental em fenômenos de psicologia de massas) ou de uma “participation mystique” (participação mística em processos mentais, por grupos de pessoas), nos métodos que sugeriremos nos próximos capítulos, tão pobre que é esta cultura, em “rites d’entrée et de sortie” (ritos de entrada e de saída). Por fim, ao término deste compêndio, paradoxal e concomitantemente ousado e despretensioso, uma “petra scandali” (pedra de escândalo) no edifício do cristianismo (escândalo na conotação de estupor inevitável provocado pelas novas idéias) apresentamos uma “chronique scandaleuse” (crônica escandalosa), uma narrativa romanceada prenhe de ideais vanguardistas e de apelos à quebra de estruturas fossilizadas em estereótipos castradores, bem como de superação de barreiras obsoletas para a liberdade e a glória do espírito eterno, acima de todas as injunções madrastas do mundo material e de todos os cerceamentos sociais aviltantes da dignidade humana e suas infinitas possibilidades de ser, crescer, interagir, amar, realizar… E, assim, estaremos trabalhando pelo “consensus gentium” (consenso dos povos) e pelo hipotético e utópico, mas um dia exeqüível “consensus omnium” (consenso de todos), em torno de questões axiais de respeito a minorias, a diferenças, e, sobretudo, à liberdade e inteireza do ser humano, em todas as suas multifacéticas formas de expressão. Com isto, então, estaremos fomentando um alinhamento do plano físico de existência, com o Plano Superior de Vida, pelo “mysterium tremendum” (mistério estupendo) da Intervenção Divina, por meio de nossa “Mater Dolorosa” (mãe que sofre – por todos nós), e, numa perspectiva escatológica, poderemos chegar a dizer, um dia, “per analogiam” (por analogia): “omne superius sicut inferius” (Tudo o que está em cima é igual ao que está embaixo). (*4)
Maria quer tocar e galvanizar também seu coração e fazê-lo(a) partícipe de Sua Graça. Cabe a você também se recolher ao cenáculo místico da oração, da meditação e da busca de comprometimento espiritual sério, na câmara oculta do seu mundo íntimo, e lá recolher o significado, a inspiração e a força, para seguir, amando e consolando, esclarecendo e servindo ao seu semelhante, em nome de Deus.
(*1) “A Pedra Filosofal” (da terminologia alquímica) e “A Voz de Deus”.
(*2) Estudiosos modernos indicam que Jesus teria tido uma vida pública de pouco mais de um ano de duração, e não de três anos, como tradicionalmente se convencionou supor. Eugênia parece concordar com esta postulação.
(*3) Mais de duzentas, simultâneas, conforme levantamento de já um bom tempo atrás (vinte anos aproximados), por parte de “mariólogos”, peritos neste fenômeno espiritual e psicológico curioso e significativo.
(*4) Num rasgo raro de erudição, para a ultra-didática Eugênia, cita ela, neste parágrafo indicado, expressões de latim, grego e francês, fartamente. Certamente, quis demonstrar, “data venia” (permissão concedida) à sua modéstia ímpar, pela gravidade dos propósitos deste livro, que seus estudos têm bases profundas, não sendo meramente especulativos ou arbitrários. Nos próximos capítulos, o lastro científico vem se somar ao científico, assombrando-nos e encantando-nos, porque nos fornece segurança para aceitar suas proposições.
(Notas do médium)
A Mulher que Pisa a Cabeça do Dragão – Outra Perspectiva de Exegese – Conclusão Idêntica (*)
Deu-lhe este preceito: “Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente”. (Gênese, 2: 16-17)
O Senhor Deus disse à mulher: “Por que fizeste isso?” – “A serpente enganou-me, respondeu ela – e eu comi.” (Gênese, 3: 13)
“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” (João, 8:32)
Vivemos em uma civilização de conhecimento. Não há mais como fazer trevas à luz do saber. Como o mito revela, Javé queria provocar a curiosidade de Seus filhos, ao proibi-los de comer do fruto do conhecimento, para que eles, fazendo uso de seu próprio livre-arbítrio, tomassem o rumo da auto-consciência, da lucidez em níveis e padrões cada vez mais amplos. Não seria outro o motivo de ter atiçado sua argúcia infantil. Fazê-lo, com o intuito de castigá-los “a posteriori” é que não faria o menor sentido. A Divina Providência faz isto conosco: propicia-nos perder o paraíso da inocência infantil, para que, por meio de enorme e milenar esforço evolutivo, retornemos à nossa origem de pureza semelhante à dos anjos, mas com a perspicácia dos gênios. Mas não é esta abordagem que gostaríamos de fazer agora. Mas sim uma de tom mais psicossexual, para aprofundarmos esta temática difusa e complexa, basicamente incompleta, para a psicologia da Terra, que ainda engatinha.
A transcendência é função psíquica feminina, assim como o ideal, a fé, a esperança, o amor. Tratamos aqui, para esclarecer melhor nossas intenções, não propriamente da mulher ou do homem, mas, mormente, do Feminino e do Masculino. Tudo que rasteja no chão, a horizontalidade, o “terra-a-terra”, o objetivo, o lógico, o pragmático constituem funções do masculino: a serpente que tentou Adão e Eva a comerem do fruto do conhecimento. Sem pretender demonizar o masculino, e, com isso, pretender inverter o fluxo histórico de condenação de um pólo psicossexual, em favor da exaltação de outro, o que constituiria terrível engano, já que o ser humano transcende à dicotomização sexual; e, outrossim, por considerar a “queda” de Adão uma experiência capital e indispensável de crescimento interior, porque, assim, adquiriu discernimento, podemos, por outro lado, dizer, com toda segurança, que para acontecer este “retorno às origens puras da humanidade”, num nível mais alto de consciência, ou seja: a síntese dialética histórica, no processo evolutivo da humanidade, em que não mais seremos matriarcais, como nos tempos primevos de nossos ancestrais, nem submetidos aos ditames do patriarcalismo, como tem acontecido nos últimos milênios, mas em que viveremos a fusão salutar e rica de valores de ambos os lados do par de opostos, precisaremos, sim, colocar-nos sob a influência do Feminino, porque será ele, simbolizado na “Mulher”, que encontraremos a salvação desejada do desequilíbrio de forças por que enveredamos há milênios.
Se observarmos atentamente, a serpente, muito embora em diversas culturas constitua uma metáfora do feminino, da sabedoria, do renascimento e mesmo da morte, aqui claramente representa o masculino, como um símbolo fálico, assim como o diálogo pérfido da serpente com Eva bem retrata a lábia sedutora do homem, cooptando o coração e o corpo femininos para seus interesses baixos, reptilianos, rastejantes como a serpente. É curioso notar, como até hoje as mulheres, além de constituírem percentual significativamente menor da população carcerária do planeta, em sua expressiva maioria aquelas que enveredam pelo crime foram aliciadas por seus pares masculinos, não lhes resistindo à sanha manipuladora e pervertida. A mulher, portanto, é a verticalidade da Presença de Deus e da Espiritualidade na Terra, tanto quanto o homem, e, principalmente, o masculino, representam o perigo da excessiva horizontalidade e materialidade das perspectivas humanas que ainda imperam na civilização terrícola. A guerra, a fome e toda ordem de desgraças no orbe normalmente têm sido geradas e nutridas por iniciativa masculina. Ao passo que na mulher e, precipuamente, no feminino, residem a reserva e a fonte de todo o bem para a humanidade, desde a doçura do carinho materno até o freio que exercem as profissionais éticas e comprometidas com a justiça e ao ideal, à ganância de seus pares masculinos, no mundo profissional.
Como foi vítima da astúcia masculina, Javeh decide-se por pôr uma força oposta poderosa à ação do Mal, enfeixada na serpente, dentro da “geração feminina”. Aqui, podemos compreender tanto uma conclamação do Alto à responsabilidade feminina de humanizar e espiritualizar todas as relações, instituições e agrupamentos humanos, como também uma revelação soberana sobre quem seria o maior Cristo da História, que poria fim ao império do mal em nosso planeta: aquela que foi a Mãe do “Verbo Encarnado”. Interessante notar que Javeh não diz que poria inimizade entre Adão e sua geração, já que Jesus, numa linguagem mística, esotérica, seria o “Segundo Adão” (“Adam secundus”), o “Anthropos”, e sim entre a “serpente” e Eva, e sua geração, Maria, metaforicamente a “Segunda Eva”, aquela que de tal modo viveria a verdade divina em seu coração que a Voz de Deus (simbolicamente, é claro), far-se-ia carne em seu ventre. Por isso, foi Ela quem, nas “Bodas de Caná”, iniciou o Cristo em Sua missão, função sempre reservada aos mestres. Eis, inclusive, que Jesus demonstra, naquela ocasião, estar confuso e lhe fazer uma consulta (preso que estava aos parâmetros moralistas e maniqueístas de um bom e clássico paradigma patriarcal) ao que Ela, com a resposta do silêncio-ativo, esclareceu com um comando para toda a Humanidade: ouvir e viver as palavras de Jesus, Seu Emissário no mundo, já que, à época, uma mulher nunca seria ouvida. Não por acaso, outrossim, dirige-se Jesus a Ela, nesta como em todas as passagens de Seu Evangelho, como “Mulher”, para deixar claro de que ela era “A” mulher que fora prometida por Javeh, como aquela que “feriria a cabeça da serpente”. Por isso, foi Ela quem, enquanto Jesus era supliciado na cruz e fazia o rito de se mostrar desesperado, mantinha-se imbatível a Seus pés, sem chorar, sem se lamentar, inalteravelmente segura e serena, a encarnação de Sophia, a Sabedoria, face feminina mística de Deus. Era esta a intenção do Cristo: enquanto demonstrava ao mundo como o aspecto Pai de Deus nos “abandona” periodicamente, Seu aspecto Mãe sempre vela por nossas dores, como fazia Maria, naquele instante sagrado. Assim, Jesus chamava a atenção dos povos para a importância de Maria, a enviada máxima de Deus para a Terra, assim confiando toda a humanidade a Seus cuidados, no momento em que, metaforicamente, na pessoa de João, todos nós fomos depositados sob a inspiração e proteção da Grande Mãe. Não por outra razão, outrossim, foi sob a guarda d’Ela (estava morando com João, desde a crucificação de Jesus) que, quando todos os apóstolos, acovardados, escondiam-se, após os trágicos acontecimentos da “paixão”, receberam o “Espírito Santo”, no Pentecostes, ou seja: sintonizaram-se com o padrão de consciência do Cristo, assim como acontecera ao próprio Jesus, quando também sob Sua guarda augusta, no passado, de modo que, em pouco mais de quarenta dias, sob sua influência, todos os Apóstolos saíram a fazer tudo que o Cristo fazia e lhes pedira fazer, sem sucesso, no correr de longo tempo. Porque, afinal de contas, Ela era a Mestra e iniciadora de todos.
Não à toa, bom lembrar também, é que é quando “desce” Ela dos céus, alusão à chegada de seu império direto sobre o mundo, que o Cristo tem poder de prevalecer e ocorre o advento da “salvação”, nos dizeres do Apocalipse. Ela que tinha a lua sob seus pés, outra referência alegórica à “serpente”, que lhe estava submetida, vencendo assim o Dragão do Mal, para a vitória definitiva do Bem sobre a Terra…
Maria, Nossa Mãe Maior, Maria Cristo, é o símbolo vivo, a “encarnação” do Feminino Divino entre nós, mostrando-nos como, após as tragédias e a falência do masculino na cruz, podemos encontrar a Deus, por outras vias, mais suaves, mais profundas, mais amorosas: a vias do coração feminino, da confiança irrestrita, da esperança imorredoura, da fé inabalável no interminável amor divino.
Maria, nossa Grande Mãe, representa, para todos, a infinita bondade de Deus, que nunca nos abandona, ainda que os aspectos da verdade ou da justiça divinas (“masculinos”), em alguns momentos, pareçam relegar-nos ao desamparo.
Maria, nossa Grande Mestra, preceptora de Jesus, representa o norte de silêncio e de verdade na ação, a nos mostrar que devemos falar menos e viver mais o Cristo, em nossos corações e no seio de nossas vidas.
Jesus era o Verbo. Ela era a Vida que gerava o Verbo. Vivamos Maria. Vivamos Deus, no amor e na paz, hoje e sempre!…
(*) Estes textos compõem o primeiro tomo do livro “Maria Cristo”, que foi psicografado e publicado no ano de 2005. O capítulo “A Mulher que Pisa a Cabeça do Dragão – Outra Perspectiva de Exegese – Conclusão Idêntica” foi o único recebido anteriormente, em 11 de abril de 2004.
(Nota da equipe editorial)