Crônicas de Gustavo Henrique
Benjamin Teixeira
pelo espírito Gustavo Henrique.
1927. Vejo um rapaz sentado à beira da porta de sua casa – derrotado. Está reflexivo. A tecnologia chegou ao último nível do imaginável, diz consigo, mentalmente. Automóveis vencem distâncias impressionantes, para quem dispõe de meios para obter um. Aviões desafiam a lei da gravidade e singram os ares, como deuses de metal. A telefonia assombra, com ligações intercontinentais, unindo pessoas a milhares de quilômetros, por incríveis cabos submarinos. O cinema assombra multidões, com a imagem corrida de atores e atrizes de lugares longínquos (o cinema falado só surgiria em outubro daquele ano, com o clássico: “O Cantor de Jazz”). A Ciência vencera. Não havia nada – estava óbvio agora – que pudesse deter o avanço da engenhosidade humana e do saber científico. A Religião estava vencida, e, com isso, sentia-se ele mesmo fracassado. Sem Deus, para sua forma de ver e sentir o mundo, não havia sentido na vida.
Duas lágrimas correram pelas faces ressecadas do jovem de pouco mais de 25 anos, na porta de casa. Abandonara o seminário. Descobrira, para completar suas reflexões tétricas, que muitos jovens iam para monastérios a fim de ocultar sua identidade homossexual, e que muitos transformavam a vida religiosa em fonte de poder e dinheiro. Estava profundamente decepcionado e sentindo-se sem perspectivas. Como esperar tempos melhores, se a Ciência avançava a galopes?
Neste instante, Mercedes, amiga nossa reencarnada, passando pela calçada em frente ao jovem, estacou diante dele e disse, num rasgo emocional fora de seu padrão recatado e pudico, sobremaneira em matéria espiritual:
– Nossa! Quanta Luz! Você sabe que você tem amigos fortes do Outro Lado? – atalhou Mercedes, fazendo alusão, gentilmente, à minha presença pobre de luz, ao lado do rapaz, que ela captara através de sua vidência bem desenvolvida.
Hernesto fez um ar de confusão, dando a entender que não fizesse a menor idéia do que ela dizia, e Mercedes, a essa altura insuflada já por amigo espiritual, que fora, a pedido meu, buscá-la em casa para encontrar-se com ele, “acidentalmente”, na porta de sua casa, para comprar alguma coisa na mercearia, explicou-se melhor:
– Não sei se sabe que sou espírita, e também médium. Vejo um companheiro desencarnado, junto a você, tentando ajudá-lo com muito carinho e atenção. Ele se preocupa muito com você – continuou Mercedes, já sob influência mental minha, em semi-transe, olhar perdido em minha direção, enquanto eu lhe injetava idéias à mente para a fala com o rapaz.
– Ele me diz que você é um rapaz muito inteligente e está com grandes dúvidas em matéria espiritual. Que tem razão em muitos de seus raciocínios e conclusões, mas que está errado quanto a supor que Deus não exista ou que a Religião fracassou, por causa do avanço da Ciência.
Hernesto sobressaltou-se, estupefacto. Embora já tivesse ouvido falar do Espiritismo, nunca dera a menor importância ao assunto, compreendendo-o como uma crendice popular de mau-gosto e supersticiosa, nunca merecendo mais que alguns segundos de consideração desdenhosa de sua parte, toda vez que travava contato com qualquer informação sobre ele e sua matéria nebulosa de fenômenos “folclóricos”. Mas aqueles dados a seu respeito, naquele exato instante, foram precisos demais para que ele reputasse a fruto de mero acaso, da parte de uma mente impressionada e ignorante, como compreendia os espíritas.
– Como você sabe disso, Mercedes? – conseguiu interrogar Hernesto.
– Não sou eu quem sabe. É o amigo espiritual que está ao seu lado que me diz. Ele também diz que você não precisa entender Religião e Ciência como campos “di-ver-gen-tes”… Essa palavra existe, Hernesto? – perguntou, ingênua, a doce médium pouco letrada.
– Sim! Sim! – respondeu, eufórico, um obstúpido Hernesto.
– Ele pede que você leia “O Livro dos Espíritos”, para que compreenda melhor o que quer dizer, já que não poderá explicar isso por meu intermédio.
Rindo com ar puro e ingênuo, Mercedes, já sem minha influência, completou:
– É que sou pouco estudada, Hernesto, e acho que esse seu amigo espiritual é um doutor como você e tem assuntos difíceis a tratar com sua cabeça instruída, que eu não entenderia.
– Nossa!… Eu não sei o que dizer… Ah… – engasgou-se Hernesto, tentando concatenar as idéias e focar a mente no essencial, confundido por fortes emoções, olhar perdido, como a catar alguma coisa no chão, com ansiedade. Conseguiu, por fim, dizer – Onde encontro esse tal de: “O Livro dos Espíritos”, é isso?
– Ah, quanto a isso não se preocupe! Amanhã mesmo trago o meu, emprestado para você. Pode ficar o tempo que quiser.
Mercedes fez menção de ir embora, quando então Hernesto, ainda perplexo, segurou-a, pela mão:
– Ele ainda está aqui, Mercedes?
A médium olhou em torno, sem afetação, mais ou menos no lugar onde me vira há pouco, respirando fundo, e voltou a perceber minha presença.
– Sim, ele está.
– Teria ele alguma coisa a me dizer? Quem é ele?
– Diz que é um amigo seu de longa data. Que pode contar com ele. Que você não está só. E que faria muito gosto a ele se você me acompanhasse no nosso grupo de estudo, nas reuniões semanais que fazemos de leitura do “Evangelho segundo o Espiritismo”.
– S-sim! Claro! Quando? Onde?
– Hoje à noite. Lá na minha casa mesmo. Posso até aproveitar para já lhe entregar “O Livro dos Espíritos”, que acha?
– Estarei lá. A que horas?
– Às Oito.
– Pode contar com minha presença. Ele quer me pedir ou me dizer mais alguma coisa?
– Que você não nasceu para ser católico, porque sua mente não se satisfaz com “do-g-ma-tis-mos” – estou certa? – muito embora todas as religiões sejam respeitáveis. E disse que você tem que conhecer e estudar o Espiritismo, porque você tem uma tarefa a realizar dentro dele.
– Com prazer.
Aquele foi o primeiro contato de Hernesto com a Espiritualidade Amiga e com as idéias espíritas. Tornou-se um estudioso voraz. Dedicou-se a palestrar, numa época em poucos oradores havia na seara espírita e chegou mesmo a publicar livros.
Hernesto já está entre nós, há mais de dez anos. Auxilia outros companheiros da causa espírita a se desincumbirem de suas tarefas sagradas. Quanto a Mercedes, voltou bem antes dele, poucos anos após aquele encontro “coincidente” da tarde de domingo. Mercedes é grande mentora desencarnada, que pediu nascer pobre e sem acesso à instrução formal, a fim de exemplificar humildade e devotamento ao próximo, nos dias difíceis dos primeiros decênios de Espiritismo na Terra. Ela é, do lado de cá, aquilo que se pode chamar de “guia espiritual” e tem toda uma pequena comunidade sob sua proteção e responsabilidade direta: o centro espírita que surgiu, a partir da célula doméstica de estudos em torno do Evangelho que ela fundou no início do século passado e que hoje é instituição espírita portentosa, com assistência a centenas de pessoas por semana.
Guias e grandes tarefeiros da Espiritualidade Superior estão reencarnados entre vocês, prezados leitores. Pelo fato de portarem limitações humanas, não se segue que estejam isentos de grandes responsabilidades ante Deus. Deve-se tomar cuidado para, à guisa de exercitar humildade, não se renegarem importantes delegações de trabalho, da parte do Governo Espiritual do Mundo. Negligência, covardia e preguiça nada têm a ver com humildade. Importantes e estratégicas atividades em prol do bem coletivo são relegadas a total e criminoso descaso, não acontecendo, portanto, pelos ares de pseudo-humildade daqueles que se enfileiram sob o estandarte das hostes espíritas. Que cada um se empenhe em fazer seu melhor, porque, se não há anjos na Terra, há santos no Céu, que querem canalizar obras de amor e sabedoria, através de pupilos de boa-vontade que, encarnados, se lhes sirvam de instrumentos úteis e valorosos, no cumprimento do dever cristão de servir santamente com Jesus.
A escolha, amigo, é sua.
(Texto recebido em 14 de fevereiro de 2004.)