Benjamin Teixeira
pelo espírito Gutemberg Faria (*).
Lembro-me bem de que a rodovia estava em ótimas condições, e de que pretendia chegar à casa de meus pais, antes da hora do almoço do dia seguinte. Viajei sozinho, sob protestos veementes da esposa (estava recém-casado) e mais dois amigos que souberam de minha intenção de cruzar o Estado, no meio da noite, varando a madrugada, dirigindo sem companhia.
Nove horas de monotonia no asfalto infindável, cheguei a um dos pontos que mais apreciava no trajeto. Sabia que o túnel era extenso, mas estranhei a demora para sair por sua outra extremidade. Parecia que fazia voltas infinitas dentro de um caracol gigante, no interior da montanha. Estava um pouco sonolento – sabia disso –, mas aquela sensação era pior que sono: sentia-me transladado para outra realidade, qual se estivesse num universo paralelo, algo como sonhando acordado.
Depois de algum tempo, comecei a sofrer o que reputei serem alucinações. Meu muito estimado avô materno, morto há mais de vinte anos, surgiu no banco do carona, a me falar sobre despertar para uma nova vida e coisas bizarras do gênero. Um professor a quem fui muito ligado na pré-adolescência, falecido há pelo menos quinze anos, também passou a aparecer no interior do carro, volta e meia, com um discurso semelhante ao da visão de meu avô. Quando isso acontecia, tentava me manter acordado, supondo estar realmente perdendo a consciência no volante. Não deveria ter ficado uma noite inteira sem dormir, apenas para chegar logo ao destino – repreendia-me intimamente, concluindo por me interrogar, entre intrigado e irritado, uma vez após outra, sucessivamente: “Que diabos havia ocorrido com aquele túnel que não terminava nunca?…”
Foi quando me vi – não sei de que modo, transportado até lá – numa cama de hospital. Tanto meu avô quanto o mestre de infanto-juventude esperavam-me, de pé, como se já soubessem que iria acordar naquele instante, conseguindo articular, finalmente, a primeira frase. Por fim, me foi possível cogitar a possibilidade de tudo aquilo não constituir uma mera alucinação e de eu… bem… não estar mais entre o número dos vivos – ao menos, não na matéria. Meu avô se responsabilizou pela notícia, seguida dos primeiros esclarecimentos:
– Você dormiu ao volante, meu filho, e bateu de frente com uma carreta que vinha na direção contrária, no interior do túnel. Lamentável, porque você voltou 47 anos aproximadamente antes da hora azada para seu retorno ao mundo espiritual. Fizemos o possível para evitar o acidente, mas você julgou despropositados todos os avisos que recebeu, no sentido de adiar a viagem ou fazê-la em mais tempo. E, irônica quão tragicamente, por causa de um dia de viagem a mais, meu muito querido, entre dois Estados vizinhos, você não só perdeu uma encarnação inteira, como ainda três séculos de cuidadoso planejamento evolutivo de grupo, descompassando-se das atividades e aprendizados de seu clã espiritual.
Confuso com tanta informação nova, perguntei o que isso implicaria para meu futuro, o que me aguardaria por conseqüência, em função de tal falta. O fogo eterno do inferno me vinha à mente, conforme a teologia tradicional pregada nas igrejas que freqüentei quando estudante. O pai de minha mãe não tardou em me responder à questão, como se me lesse os pensamentos, com um certo ar de sorriso, embora circunspecto e grave:
– Não chega a tanto, meu estimado menino. “Apenas” terá que aguardar cerca de cinqüenta anos, pela liberação de nova oportunidade de descida ao plano material, em outro corpo de carne, provavelmente sem contar com as dezenas de entes queridos que o assistiam, na vida física que acabou de se extinguir. Precisará retornar ao zero das lições que iam em curso, quando de seu desencarne extemporâneo, e contará no máximo com uma ou duas almas conhecidas d’outras vidas, a embarcarem em seus programas existenciais para tal próxima reencarnação. Solidão, vazio, até desespero, assomar-lhe-ão à mente e ao coração, amiúde, no decorrer desta vida vindoura, em decorrência da profunda nostalgia que lhe causará o afastamento da família espiritual inteira.
– Mas tudo isso por causa de uma noite de imprudência ao volante?…
– Pois é, meu filho… pois é…
Bebida, sonolência, imprudência no trânsito… quantas mortes fora de hora… Tomara que nos ouçam o exemplo e evitem o pior consigo… antes que seja tarde demais…
(Texto recebido em 6 de novembro de 2007. Revisão de Delano Mothé.)
(*) Pseudônimo.