Euzébia nasceu para a mediunidade com Jesus. Todavia, era cercada de azorragues por toda parte. Confrades espíritas viam-na como alma vaidosa, que pretendia se promover, por meio da mediunidade. Adversários enxergavam-na como charlatã vulgar, mistificando para obter benefícios mundanos. Inimigos espirituais atacavam-na em todas as suas fraquezas, fazendo-a fraquejar, inúmeras vezes, dia sobre dia. À noite, o tormento dos inimigos desencarnados, de dia o ataque dos encarnados. Em todo tempo, a perseguição, a incompreensão e o desprezo gratuitos por parte de muitos.
Se era vista em pequenos deslizes, próprios à condição humana, logo era taxada de hipócrita e venal, cobrando-se-lhe atributos de anjo, quando mal conseguira plenificar seu status de ser humano. Ignorara as alegrias da constituição de um lar, renunciara a uma vida profissional de destaque. Nenhuma preocupação com posses, nem mesmo o mínimo de patrimônio e segurança financeira para si. Tudo era para a obra dos espíritos a quem servia no mundo físico. Nada encantava Euzébia, a não ser o serviço da caridade, principalmente no intercâmbio entre os dois mundos, fazendo-se ponte entre os vivos de uma dimensão e os vivos de outra.
Mas Euzébia, como dissemos, era também humana, e portava alguns defeitos que muito a incomodavam. Exigente consigo, flagelava-se por dentro, continuamente, por não ser tudo que sentia dever ser, na condição de cristã, principalmente de intermediária entre as duas dimensões de vida. Entretanto, como a evolução não se dá aos saltos, Euzébia tentava e muitas vezes fracassava redondamente, superar de vez os pontos que sentia menos aceitáveis.
Euzébia periclitava, estava à beira do colapso nervoso. Dormia pouco, trabalhava quase o tempo inteiro, e recebia pouquíssimas compensações pelo trabalho ingente que realizava. Pedradas, porém, eram incontáveis. A falibilidade humana começava a lhe trair. A vida começava a lhe fazer sem sentido. Distribuía a linfa da felicidade, do conforto e da paz, com centenas de criaturas, mas ela mesma seguia como um zumbi, aturdida de angústia e tristeza, sempre reputando todo seu esgotamento a estar abaixo da estatura moral que julgava imprescindível ao seu trabalho. Para completar o quadro crítico, obsessores começaram a ter cada vez mais caminho livre para acessar a sua alma, sensível à culpa.
Em lances supremos de caridade com o próximo – esses completamente insuspeitados por quem lhe seguia de perto, tanto quanto de longe – não permitia sequer que suspeitassem do tamanho da sua dor, e dizia, publicamente, ser muito feliz, e dizia estar sem problemas, para tranquilizar a todos, e agradecia, a todo momento, a gentileza da presença de todos, quando ela mesma era quem dava, orientando, consolando, estimulando a todos continuamente, dava, dava, sem limites… sem sequer ter noção de como ia esgotada, negando-se parar para pensar na própria dor. Criando um teatro curioso contra o culto a sua personalidade, simulava cenas de raiva ou futilidade, para que ninguém a idolatrasse, e, por fim, o efeito era trágico. Triste, só e cansada, era, ao esconder sua bondade, atacada pela inveja e incompreensão de muitos, que lhe supunham adivinhar intenções inconfessáveis, quando mais pura a médium cristã estava sendo.
E nós invocamos a Maria Santíssima, e fomos visitá-la, no seu catre de dores ocultas. Naquela noite, um grupo de almas aflitas havia sido tratada, por seu amor devotado, não perfeito, mas devotado. Foram todas satisfeitas para casa, com novas luzes para seu destino, e encontramos Euzébia em pranto doloroso e profundo, completamente desiludida consigo mesma. Não via chances de se aprovar como alma boa: não via bondade em si, mas apenas o sentido de dever. Euzébia chorava pungentemente e só lhe podíamos dizer, ao fundo da alma, para que ela captasse, dentro do que sua mente em turbilhão permitia aceitar: Coragem, Irmã. Almas boas velam por seu destino. Você não segue sozinha. Não se ponha em tão baixa conta, por não ser o anjo que julga dever ser, na posição de trabalho que ocupa. Se não já é exornada com as virtudes que seriam próprias a essa função e ainda assim segue fazendo o bem, mais mérito ainda tem. Paciência, irmã. Perdoe-se, por ser humana. Não se esqueça de que você segue sobrecarregada pelas solicitações mentais de muitos e pelos petardos psíquicos de um sem-número adversários da causa e daqueles a quem ajuda. Jamais a abandonaremos, porém.
Euzébia, porém, naquele momento sem clareza mediúnica, abatida, tinha os olhos secos e o coração vazio. Lá fora, a multidão a invejava. Sempre andava sorrindo, distribuindo alegria a todos. Era a fonte de estímulo e de amparo para muitos. Mas Euzébia continuava de pé, praticamente por intervenção divina. Somente ela, por dentro, sabia como carregava o coração em chamas. Mas, por fora, derramava águas puras de amor desmedido. Sentia-se inútil indigna, mas nós oramos por ela. Chegava ao trabalho espiritual sempre aberta a dar, mas era de imediato atacada pelas vibrações contraditórias e descaridosas daqueles mesmos a quem ajudava. Como toque último de virtude que não notava em si, imputava toda a responsabilidade à sua inconstância emocional, sem perceber como era vítima da maldade e da malícia de muitos. Alguém, recentemente, a apelidara de quase-anjo. Euzébia sorriu, desconcertada, desconversou e reagiu com quase ironia à pessoa que tentou tocar-lhe o coração. Não admitia aquilo… e, sozinha, zombando de si, chorou… de vergonha… E nós sorrimos, confiantes de que, um dia, apesar de Euzébia se achar tão pouco no trabalho e tantos fazerem tanta questão de desanimá-la, ainda que dela usufruindo a mensagem de esperança e paz, um dia… quem sabe, ela perceberia como era importante para tantos, e como sua dor oculta era fonte de alegria para muitos, entre aqueles inclusive que lhe maltratavam o coração, enquanto ela, enlouquecida de culpa por não ser melhor, acaba permitindo intrometerem-se em sua alma, causando estragos ainda maiores a seu coração cansado de sofrer e se dar, sofrer e se dar sem tréguas, em prol da felicidade de muitos…
Será que os amigos de Euzébia perceberão os apelos do Alto, apelos de misericórdia para que tenham um pouco mais de compreensão com a matrona exaurida que a todos nutria a alma, sem esperar nada em troca? Que segue tentando fazer o bem e que concorda com todos que lhe enxovalham a alma de acusações descabidas, quando ela, por sua vez, só tem palavras de conforto e de incentivo para todos? Será que não vão perceber que ela também precisa de ajuda, que ela também é um coração carente de amparo, apoio e carinho? Onde estão os beneficiários de Euzébia? Sorrindo à distância, relegando-a a abandono, supondo-a sempre bem amparada e feliz? Será que não percebem que, para perceber o bem com clareza, os médiuns pagam o preço medonho de ver o mal, muito mais que o normal?
Que Deus abençoe Euzébia, todas as Euzébias do mundo… que dão de si sem nada esperar em retribuição pelo simples prazer de ver o mundo melhor, de ver as pessoas sorrirem. Que Deus sustente Euzébia, a mãe que renunciou a ser mãe pelo corpo, para ser mãe de muitos pela alma… Que Deus a ampare, coração que não é anjo e que sofre horrores para sustentar um trabalho de anjo, com o coração em lágrimas de indescritível padecimento… Que a Mãe Santíssima da Humanidade a sustente, pobre irmã de Cristo, entre os crucificadores da Terra, que não lhe dão tréguas e a pressionam e exploram dia e noite… sem cessar…
Eugênia-Aspásia (Espírito)
Benjamin Teixeira de Aguiar (médium)
28 de setembro de 2001