por Benjamin Teixeira.
Às 2h da madrugada desta segunda-feira 4 de agosto, a orientadora espiritual Eugênia me pôs em transe, e rasgou, à minha psicovidência, um quadro espetacular de cidade antiqüíssima de remoto período da civilização humana na Terra. Fiz algumas perguntas sobre a época e lugar, a mestra tergiversou, elegantemente (não mas respondendo), apenas me fazendo ver que estávamos a mais ou menos duas horas do entardecer, no episódio a que começava a assistir, em experiência semelhante à cinematográfica. Encarapitada em varandim, em torno do pico de uma torre, em forma de cogumelo – construção imponente de pedra e ferro (ambos com cor de terra), que parecia desafiar as Potências da Natureza –, estava uma lindíssima jovem, que contaria menos de 20 anos, mão enlaçada à de um varão, que a desejava e amava no nível máximo que um homem pode querer e adorar uma mulher, como parceira de destino. O afã de cariciar a pele de seu rosto, com os próprios lábios, enchendo seus traços mimosos de beijos idolátricos, a misturarem erotismo e devoção, mal era contido, pelo respeito que o compelia a aguardar o momento propício da dama virtuosa. O vestido de tecido leve esvoaçava, com a ventilação farta, àquela altura do ápice da torre… A eletricidade, entre seus dedos e palmas, era quase palpável… Fiquei sabendo, então, num lampejo, que aquele era o grande amor romântico daquele homem, em sua juventude, e que, apesar de havê-la desposado, perdeu-a, no primeiro parto, cujo feto, inclusive, também não vingou…
Um salto no tempo, e vejo agora o mesmo homem no início da terceira idade ou no fim da maturidade, observando, com amor infinito, um rapaz em pleno vigor da mocidade, diante de si, seu filho único, rebento de seu segundo casamento, que constituía o centro e o sentido de sua existência. Estão no mesmo ponto máximo da torre, e me foi revelado, outrossim, que nosso personagem se convertera numa figura importante do lugar, um dos homens mais poderosos daquele grande empório da Antigüidade. Logo mais, em outro lapso instantâneo de imagens (e da linha do tempo), no mesmo píncaro da torre, ele mesmo segura, em seus braços, aquele jovem, em estertores e esgares finais, após haver sido golpeado, num assalto surpresa de forças inimigas. Respiração sôfrega, miúda e acelerada, olhar esgazeado e perdido no infinito, o rapaz agonizava, não mais completamente consciente do que se passava em torno de si. O sangue ensopava o tecido grosso da vestimenta típica daquela cultura, tanto quanto encharcava os cabelos muito finos e fartos, de um tom claro, próximo ao louro, que contrastava com a pele queimada, de alguém acostumado à exposição aos raios solares. A tarde caía, lentamente, e o genitor encanecido, em verdadeiro surto de desespero, sentado ao chão, abraçou-se ao tronco do jovem e adorado moribundo, em respiração sibilante. Filho único, polarizador de todos os sonhos de seus ideais de homem rico e influente… Sem ter a menor condição de aceitar o que julgava absolutamente inaceitável, esbravejava, enlouquecido, uivando, em total desgoverno das emoções, não conseguindo conceber uma vida sem a presença do centro de suas cogitações, o propósito de tudo que fazia e sentia…
Não acreditava em Deus, nem em vida após a morte, e tal perspectiva tornava mais agudo, mastodonticamente agudo, aquele instante de amargura, de um modo intraduzível em linguagem humana. A respiração de seu bebê-homem fazia-se mais lenta e curta, a cor da tez se azulava, progressivamente, o sangue criava uma poça em torno de ambos, naquele sinistro e último abraço de pai e filho, em agonia inqualificável… Por que não fora ele o atingido pelo instrumento cortante que lacerara a cabeça de seu amor? Como viver sem ele? Para que viver, depois dele?
Foi quando se deu conta, entre súplicas urradas, em dor primal de fera revoltada, debatendo-se no catre do sacrifício, de que nunca abraçara seu rebento… Aquele, assim, não era só o último, mas também o primeiro, e seria o único abraço que trocariam… Embora aquele ser fosse toda a sua razão de existir, todo o motivo de seus esforços, nunca o enlaçara nos braços, com o amor e abertura que experimentava, naquele paroxismo de padecimento sem reservas, todo sentimento e extravasão da alma… E era, tão-só, por ser homem… outro homem… Ele jamais se apercebera conscientemente disso, até aquele momento augusto de sofrimento indescritivelmente colossal… Como ele nunca se permitira tocá-lo, demonstrando, de modo singelo mas significativo, o quanto lhe queria bem, o quanto era importante em sua vida, ainda que sem permutar uma única palavra? Como não notara ser essa uma barreira tola, baseada em limites sexuais? Seu filho não era um homem… era seu FILHO!!!!… O homem quase velho desferia ruídos incompreensíveis, em brados horrendos, que causavam horror em qualquer um que estivesse no raio de alcance de suas eclosões emocionais… erupções sonoras…
Tentaram acalmá-lo: familiares, serviçais, amigos… No entanto, mal conseguia articular pensamento, inteligir o que lhe diziam, totalmente convertido em angústia sem-fim, não querendo interagir com quem quer que fosse, ofendendo e atacando verbalmente, com impropérios impronunciáveis, todo e qualquer um que se aproximasse da dupla, que ousasse cometer o ato sacrílego de romper o isolamento sagrado daquele instante ímpar e transcendente de intimidade… e de solidão… cósmicas!!!… Transfundira-se, tetricamente, numa versão masculina “teratologizada” da “mater dolorosa”: pânico, desespero e loucura, e não dor serena e resignada, como na figura clássica da iconografia religiosa cristã, de um Cristo-morto nos braços da Mãe Santíssima. Aos mais enfáticos no intuito de retirá-lo daquele transe de agonia ciclópica, ameaçava lançar-se dali mesmo, do parapeito da torre, com o corpo hirto do filho… porque, de fato, à medida que os minutos se sucediam, e depois as horas… o cadáver do rapaz, após o último suspiro, enrijecia-se, enregelava-se… o sangue que espocara do ferimento, na têmpora direita, convertia-se numa pasta viscosa e fria, que o senhor dementado beijava sucessivas vezes, misturando-a às suas lágrimas copiosas… Sentia, qual uma fêmea parida, em angústia selvática, o cheiro de sangue imiscuir-se ao do suor da pele de sua cria, em vertigens de algia visceral do espírito, que nenhum ser vivente, que não houvesse passado por situação semelhante, poderia jamais compreender.
O crepúsculo chegou sobre a Terra, deitando melancolia cortante naquele rincão longínquo do Oriente Médio, um crepúsculo cheio de cores, que, para aquele homem maduro, de vocação à ação e à realização, sem inclinações ou arroubos poéticos, constituía, todavia, por sua crítica condição de horror, um espetáculo macabro de sangue, a derramar-se, em cascata, do Empíreo para o Globo… E prosseguia chorando, clamando e blasfemando, contra um Deus ou deuses que não acreditava existirem, mas que, pela síncope da lucidez que lhe ia n’alma, era capaz de fazer existirem, pela determinação de seu ódio e revolta insanos, apenas para todos maldizer, por aquela tragédia inenarravelmente injusta e titânica.
E a noite caiu, e a madruga chegou. Ainda sobre a poça de sangue que secava, gradativamente, o homem de cabeça nevada sustentava, no regaço, o cadáver do homem moço, golpeado fatalmente no crânio. O silêncio se fizera em sua voz sumida na rouquidão, após tantos urros primais consecutivos, sem pausas ou descanso, a plenos pulmões, até a exaustão do fôlego… intermináveis vezes… e somente gemidos e soluços, aqui ou ali, espocavam, quase inaudíveis, da caixa torácica à beira do colapso, igualmente… Logo mais… a noite… o céu estrelado… a lua minguante… o deserto distante… a cidade sombria… o vento frio e vazio… um “nada” medonho e terrificante, que sussurrava notas de terror mefistofélico, à sua alma transtornada, na voragem mais tresloucada da desesperação… A noite em seu coração… para sempre…
Três mil e duzentos anos se passaram, e o Cristo viria à Terra. Mais dois mil anos correram, até que a dupla de pai e filho se reencontrou. A primeira mulher do protagonista do drama que me foi mostrado – o que perdera os maiores afetos, quando jovens, e sobreviveu a ambos, para carpir a lacuna impreenchível em seu peito dorido – é atualmente guia espiritual do próprio, hoje encarnado, bem como de seu filho, também reencarnado, bem mais jovem, mas não por meio de seus genes. O moço é um quase adolescente de 20 anos; e o pai de outrora, um homem que não completou os 40, e que sente vertigens de querer-bem, pelo quase-menino, sem saber d’onde vem tanta ternura… Abraçam-se, normalmente às escondidas, por terem vergonha de que vejam a cena incomum de dois homens ficarem enlaçados, por tanto tempo, e só se afastarem quase em lágrimas. Não se desejam sexualmente, mas se amam de uma forma que se poderia dizer sem-medidas… um amor que doía, em tempos de antanho, mas que hoje é felicidade e deleite infinitos… pela clara intuição de que estão unidos, para não mais se apartarem um do outro, neste ou n’outro mundo… Não são pai e filho biológicos, na atualidade, mas o laço de afeto espiritual que os conecta não se sujeita a convenções ou injunções, sociais ou instintuais. Vivendo o espírito plenamente, no campo de seu afeto místico e incomunicável, sabem que são dois seres que se querem bem, em proporções ciclópicas, a quase doer, e que, em lugar da dor, percebem uma vaga de alegria inexplicável, como a sussurrar-lhes, secretamente, ao coração:
“Agora, podemos nos abraçar… Agora podemos dizer que nos amamos, sem pudores tolos…” E, principalmente: “Agora sabemos que somos eternos, que não cessaremos de nos querer bem, com a morte do corpo, e, sim, viveremos este amor profundo e sem-fim, por toda a eternidade!!!…”
Isto, sem dúvida: o contato e o convívio com os amados, os verdadeiramente amados, é a mais alta concepção de paraíso que um ser humano pode idealizar, quão, mormente, vivenciar…
(Texto redigido em 4 de agosto de 2008. Revisão de Delano Mothé.)